Crítica ao filme Ary (2022)
A disforia de género, resumidamente, é o termo atribuído ao conflito interno de uma pessoa que não se identifica com o seu sexo biológico. Digo resumidamente pois é o máximo de compreensão que algumas pessoas precisam para formar pré-conceitos sobre o assunto, mas, obviamente, a definição vai muito além disto.
Um profundo questionamento deve ser feito em relação às amarras sociais que nos são impostas pela sociedade e o quanto elas afectam a relação com o nosso corpo e mente. O padrão de masculinidade e feminilidade na França do século XVIII é completamente diferente do que se encontra em Portugal no século passado e no presente. É uma construção social movida a interesses políticos e económicos que prejudica o nosso auto-conhecimento e aceitação. É um fenómeno complexo, que afecta tanto o colectivo quanto individualmente e precisa de ser debatido de maneira sensível e empática.
O cinema possui uma importância simbólica muito maior do que apenas o entretenimento ou o escapismo. É através de um bom filme que podemos ter contacto com realidades e culturas diferentes das nossas, exercitar o músculo da empatia e desmistificar estereótipos. É provável que isso seja um dos motivos de muitos membros da comunidade LGBTQIA+ se identificarem e se aproximarem do mundo das artes. É uma forma de encontrar profundidade e sensibilidade onde, muitas vezes, só se recebe intolerância e violência. Identificar a origem do conflito diário que temos connosco e com a sociedade em que estamos inseridos. E o mais importante: procurar por uma libertação.
Uso tudo isto como introdução para constatar a importância de documentários como Ary, realizado por Daniela Guerra, para entendermos o quão importante é a representação de histórias reais de pessoas transgénero e não-binárias no cinema, ainda mais quando essa é feita com a profundidade e o carinho deste filme.
A realizadora acompanhou, durante três anos, a vida de Ary Zara, numa época decisiva. Ary é um homem trans e um grande questionador dos papéis de género que lhe foram impostos pela sociedade desde pequeno. Durante este período representado, ele passa por um grande autodescobrimento, decidindo começar o tratamento hormonal e fazer a cirurgia de mastectomia. Mas o filme é sobre muito mais do que isso.
Ary é extremamente consciente sobre o que a sociedade espera que ele seja e o que ele realmente quer para si mesmo. É uma jornada particular, necessária e por muitas vezes dolorosa e solitária. Ao mesmo tempo que existem tantas pessoas a passar pelo mesmo sentimento, a vivência de cada um nunca é a mesma. Os seus depoimentos levam a reflectir sobre quem realmente somos e o que sempre nos foi imposto.