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Liberdade Universalista ou Essencialista?

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Confesso que estas eleições (para não falar no mundo em geral...) estão a deixar-me preocupado. Preocupado pela erosão progressiva dos grandes valores universais orientadores de esquerda: liberdade política, igualdade de oportunidades, justiça social e solidariedade. Valores humanistas que atravessaram e amadurecem ao longo de mais de 300 anos do pensamento político ocidental. 

Receio que daqui a uns dias, uns meros 50 anos depois da revolução que nos confiou tão prezada liberdade, passemos ao testemunho duma crescente influência, poder e representatividade parlamentar de um partido cuja motivação (começando pelo próprio nome) e narrativa dominante, se alicerça e alimenta a divisão, indignação, rancor, ódio e exclusividade. Estes sentimentos e estas emoções são impulsivas, polarizantes, emotivas e nada sensatas. 

Receio que daqui a uns dias, uns meros 50 anos depois da revolução que nos confiou tão prezada liberdade, passemos ao testemunho duma crescente influência, poder e representatividade parlamentar de um partido cuja motivação (começando pelo próprio nome) e narrativa dominante, se alicerça e alimenta a divisão, indignação, rancor, ódio e exclusividade. Estes sentimentos e estas emoções são impulsivas, polarizantes, emotivas e nada sensatas. 

Na minha opinião, o grande problema dos partidos de extrema direita como o C.hega (espalhados um pouco por todas as democracias liberais do Ocidente), é que o prisma que nos oferecem para que consigamos ver, e fazer sentido do mundo é simplório e dicotómico. Eles, versus nós. Negro versus branco. Corruptos versos incorruptos. Políticos versus contribuintes. Portugueses versus imigrantes. Os exemplos abundam. Não há espaço para áreas cinzentas ou zonas de transição. 

Isto de facto dá imenso jeito. Porque esta abordagem simplista sugere soluções simples que parecem óbvias e geram ainda mais indignação que — o dado problema — ainda não tenha sido resolvido. Infelizmente, o mundo em que vivemos é mais complexo que isso e não existe nenhum problema humano com solução simples e rápida. As soluções propostas por partidos como o Ch.ega, de uma forma mais ou menos explícita, são desenhadas de forma a subverter esses valores universais de liberdade, igualdade, justiça e solidariedade. Basta pensar na já famosa castração química proposta pelo partido.

Infelizmente, o mundo em que vivemos é mais complexo que isso e não existe nenhum problema humano com solução simples e rápida. As soluções propostas por partidos como o Ch.ega, de uma forma mais ou menos explícita, são desenhadas de forma a subverter esses valores universais de liberdade, igualdade, justiça e solidariedade. Basta pensar na já famosa castração química proposta pelo partido.

Para o bem e para o mal, no mundo actual, as respostas rápidas e fáceis não existem. Entender mecanismos complexos e multifacetados de causa-efeito, não-lineares, requer tempo, estudo e esforço.

Divago. Voltemos aos prismas simplistas, porque no reverso da medalha, testemunho no mundo Ocidental anglo-saxónico, e agora de forma crescente fora dele, uma outra abordagem dicotómica que eu acho, também começa a pôr em causa os mesmos valores universais que as sucessivas revoluções liberais na Europa trouxeram. 

Há já algumas décadas no Ocidente, estes prismas dicotómicos, polarizantes e simplistas são usados de forma a sublinhar as diferenças que nos separam. Mulheres, imigrantes, pessoas trans, diferentes tons de pele, deficientes, etc.  As identidades estão cada vez mas fragmentadas e fincadas no Ocidente, e estão sendo instrumentalizadas usando o pensamento pós-modernista, pós-colonialista e essencialista. O resultado semeia discórdia, divisão e repostas emotivas. Respostas essas que estão a beneficiar de forma perversa a subversão desse universalismo neutro, necessário para uma sociedade tendencialmente mais livre, igual, justa e solidária.

Entendo os argumentos intelectuais da rejeição de narrativas opressoras oriundas do patriarcado machista, do colonialismo imperialista, do racismo brutal, do heteroconformismo. Sendo que faço parte de mais de uma minoria, sei bem o que é sentir o poder repressor a manifestar-se através do preconceito. 

Fiz parte da génese de um movimento em Portugal que empregou esta estratégia para combater o preconceito. Por exemplo, institucionalmente, é absolutamente necessário tomar em conta o racismo estrutural e o nosso papel incontornável no esclavagismo moderno de forma a tomar medidas que invertam essa história e cultura injusta. Ainda assim, é importante entender que a estratégia essencialista de identidade armada pode ter perigos que podem não ser imediatamente aparentes. Mounk, no seu livro recente “The Identity Trap” tem alguma razão quando avisa: se continuarmos cegamente nesta direcção, perigamos cair numa armadilha. Por definição uma armadilha seduz e atrai a vítima com um propósito estreitamente definido (comer, por exemplo). De seguida e de repente, encurrala-a, subvertendo a proposição inicial. Quando a vítima dá conta da situação já é tarde de mais para escapar.

É importante entender que a incapacidade de encontrar empatia e solidariedade, excluindo pessoas que se identificam de forma diferente da nossa, é essencialista e perigoso porque encaixa lindamente na fórmula simples do Cheg.a. Aliás a principal estratégia de partidos e movimentos extremistas é a de desencorajar a formação e o alargamento de círculos de empatia e solidariedade com pessoas com as quais, inicialmente, podemos não nos identificar. Sejam elas por razões de cor da pele, género, capacidade intelectual, habilidade física, orientação sexual ou qualquer outra razão. 

É importante entender que a incapacidade de encontrar empatia e solidariedade, excluindo pessoas que se identificam de forma diferente da nossa, é essencialista e perigoso porque encaixa lindamente na fórmula simples do Cheg.a. Aliás a principal estratégia de partidos e movimentos extremistas é a de desencorajar a formação e o alargamento de círculos de empatia e solidariedade com pessoas com as quais, inicialmente, podemos não nos identificar. Sejam elas por razões de cor da pele, género, capacidade intelectual, habilidade física, orientação sexual ou qualquer outra razão. 

Eu entendo a dinâmica a funcionar aqui. Se alguém me chama de gay promíscuo ou português preguiçoso tenho basicamente 2 respostas possíveis:

1) usar essa identidade categoria para reunir uma massa crítica de gente disposta a resistir; ou

2) argumentar e tentar desmantelar a categoria de identidade para previr que seja usada para me prejudicar (ou favorecer). O problema é que as duas opções nem sempre estão disponíveis a toda a gente — é um pouco difícil mudar ou esconder a cor da pele ou a dependência de uma cadeira de rodas —, e que a opção 2 é bem mais difícil que a primeira. 

A ironia é que a primeira estratégia alimenta o jogo dos partidos de extrema-direita, em pelo menos duas frentes: 1) simplifica constelações de identidades que são na realidade bem mais complexas, permitindo uma definição e demarcando-se categorias únicas, fáceis de instrumentalizar; e

2) alimenta o mesmo tipo de sentimento que os partidos de extrema direita: divisão, rancor, ódio e exclusividade. Não é preciso olhar muito longe para ver os resultados, olhem para o descalabro e circo da política dos EUA. As duas manifestações de essencialismo (“wokeism” versus “trumpism”) entraram num ciclo de alimentação mútua que não tem fim à vista e pode ser (oxalá que não!) que não acabe bem.

Eu sou mais do que a minha orientação sexual. Ela não é a minha essência nem acredito que seja "O" factor que me define. Sou de meia-idade, sou homem, sou empresário, sou filho, sou irmão, sou tio, sou cozinheiro, sou amante de música, sou curioso, sou humanista, sou de esquerda, sou muitas coisas. Nenhuma consegue, nem deve (a meu ver) destilar a minha identidade. Eu sou um ser complexo, difícil, muitas vezes contraditório, faço parte dos tons de cinza que resiste a categorias convenientes. 

“Cada um de nós neste planeta é “um outro” aos olhos de outros — eu sou na visão deles e eles na minha”. Kapuscinski, o jornalista polaco que passou grande parte da sua carreira documentando a África pós-colonial, no seu livro “The Other” (O Outro) debruça-se de uma forma poética sobre um possível caminho para contrariar estas tendências essencialistas e populistas. O grande desafio que temos diante grande parte das democracias liberais do Ocidente — e Portugal não é excepção — é manter o foco em construir sociedades que tendam ser cada vez MAIS iguais, MAIS livres, MAIS justas e MAIS solidárias.

 

Gonçalo Diniz