Menstruação, Gestação, Puerpério: serão exclusivos a mulheres “cis”?
Djamila Ribeiro, académica e feminista negra brasileira, publicou recentemente no jornal Folha de S.Paulo um controverso texto sobre o uso das expressões: “pessoa que menstruam”; “pessoas que engravidam” e “pessoas que têm mamas”, criando um ambiente de alerta para o apagamento da palavra/categoria “mulher” em prol do uso de expressões inclusivas para pessoas Trans, Não-Binárias e/ou Intersexo.
Não seria de esperar que os argumentos apresentados pela filósofa criassem rapidamente uma onda de contestação por parte da comunidade Transfeminista sobre o teor transfóbico e transmisógino das suas declarações e da consecutiva marginalização e estigma que pessoas Trans estão sujeitas.
A polémica trazida por Djamila Ribeiro não é nova. O clima de pânico em torno da perda da categoria “mulher” para pautas políticas Trans, é uma realidade trazida por feministas radicais há décadas. Promovendo um determinismo biologista reciclado, os discursos Trans-Exclusionários excluem mulheres Trans do campo da feminilidade pela sua aparente “inaptidão” a “propriedades funcionais” ligadas à reprodução e configuração histórica do feminino. “Se não menstruam, não engravidam, não são mulheres”.
Esta é uma premissa dos discursos anti-trans por parte de feministas radicais (TERF) que, negando vivências alternativas aos sistema cis e hetero, geram um clima de insegurança e perseguição a pessoas Trans e/ou não binárias, sujeitas tantas vezes ao policiamento dos seus corpos por parte de instituições psico-médicas e ao risco acrescido de assédio e suicídio.
É de salientar a incongruência destes argumentos dentro dos próprios discursos e reivindicações feministas. Lutando pela libertação e auto-determinação dos corpos das mulheres, das acções políticas em prol dos direitos sexuais e reprodutivos, do direito ao aborto, da visibilidade do assédio e violência sexual, os caminhos feministas mostraram sempre lutar pela libertação dos corpos como forma a autonomizar a vida da mulher. O lugar de determinismos essencialistas que colocam a “biologia como destino” deram lugar à autodeterminação e libertação do feminino de códigos conservadores patriarcais. Graças a estas pautas feministas parece consensual, no ocidente, a rejeição de concepções conservadoras da mulher enquanto “fada do lar”, “esposa extremosa” ou “mãe dedicada”.
No entanto, parece que ao citar um lugar de fala/opressão específico, alguns campos feministas tendem a escolher silenciar outros. Não reconhecendo o seu privilégio, desinteressadas de uma história intensa de discriminação patriarcal e machista de outras expressões de feminilidade que não as “tradicionais”, perdem a possibilidade de construção de alianças que combatam as formas interseccionais de desigualdade e discriminação que afectam as diferentes formas de ser mulher.
Mas afinal, quem pode ser mulher?
Mulher é só quem tem útero? Só quem menstrua? Só quem engravida? Mulheres que não menstruam, sem útero, sem peito(s), não podem ser mulheres? E as mulheres Trans e Intersexo, não podem ser mulheres? Homens Trans e pessoas não binárias não podem menstruar? Não podem engravidar? Continuaremos a querer que as identidades e papéis de género estejam necessariamente ligadas ao sexo, genitália ou análise cromossomática? Continuaremos a defender um mundo dividido entre dois únicos e correspondentes géneros?
O pânico de género criado entre intelectuais e activistas feministas parece descabido de qualquer razão ou fundamento de ser. Continuamos a afirmar que existem corpos que importam mais que outros e a interditar corpos que negam a fixidez de regimes despóticos heteronormativos. A linguagem neutra de género não pretende apagar o feminino ou conceito de mulher, mas incluir um espectro mais vasto de identidades e expressões de género.
Os feminismos só têm a ganhar com os contributos que identidades Trans, Intersexo, Não-Binárias, têm proporcionado aos conceitos de sexo e género que, na sua relação, confinam homens a corpos com pénis e próstata e mulheres a corpos com vagina e útero. A disputa pelo que se entende como mulher não é nova e não diz respeito somente às mulheres cis heterossexuais. A auto-determinação de pessoas Trans, Intersexo ou Não Binárias não são questionáveis.
Parafraseando, uma vez mais, Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. (Santos, Boaventura de Sousa, Reconhecer para libertar, 2003).
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.