A Jacques e a queerização das ruas do Império
Ora bem, temos o saber e temos o poder. Um não existe sem o outro. O saber é um emaranhado de teias tecidas por diversos actores das mais variadíssimas áreas e tem como função validar conceitos e legitimar comportamentos, estabelecendo, assim, quais os ingredientes ao dispor do humano pensante para que este possa formular as novas verdades que chegam em catadupa e que vão regendo a vida dos povos; esclareça-se que, muito embora a verdade, socialmente produzida e reproduzida, não seja sempre propriamente científica, porque não foi directamente formulada por agentes científicos, aquilo que permitiu que a ela se chegasse, os tais ingredientes ao dispor do humano pensante, é científico, no aspecto em que emergiram das verdades autorizadas e postas a circular pelos círculos de sabedores que exercem ciência.
Assim, tudo aquilo que tem selo científico é assumido como verdade, independentemente de o ser, ou não; e quem o produz, senhor da verdade. No entanto, houve, desde sempre, saberes produzidos por agentes científicos, que não se estabeleceram, pelo menos num primeiro momento, como verdade. Para que o saber se torne verdadeiro é preciso que seja produzido por uma entidade produtora de saber que possua poder e que tenha, portanto, o poder de validar e de impor as suas verdades ao todo social. E quem é que é essa entidade? Quem é que haveria de ser? O culpado é sempre o mesmo, o Imperador, o omnipresencial corpo hetero-patriarcal-europeu que em si vive ensimesmado; o mesmo que tomou conta do masculino, do espaço público e do ato de fazer, fazendo-se fazedor, fazendo as disciplinas e fazendo-as à sua própria imagem. Fê-las à sua imagem ao fazê-las geradoras de axiomas sobre as suas próprias verdades, as verdades que faziam dele senhor absoluto, incontestado, dono dos saberes e, portanto, dono das verdades; as disciplinas foram criadas, então, por quem detinha o poder, como veículos de oficialização alargada do seu saber. E assim o mundo das supostas verdades se criou (e se tem criado).
O que o todo poderoso, senhor absoluto do grande patriarcado, que tudo fez e tudo tem feito para se manter o timoneiro incontestado dos destinos da (sua) humanidade não previu foi que as suas disciplinas pudessem ser utilizadas por outrem que não Eles e que esse Outrem começasse a questionar as suas directrizes axiomáticas; ao questioná-las, questionou todo o seu Império, o Império em que o Imperador é Imperador porque é homem; é homem porque tem falo; tem falo porque é masculino; e é masculino, porque é heterossexual. E, evidentemente, por ser Imperador tem, ou tinha, consigo, também, todo o poder e, portanto, o monopólio do saber. Um dia, porém, o Imperador, descuidando-se e distraindo-se, extasiado e enovelado pelo deleite que só chega a quem é Imperador, viu chegar ao edifício científico autorizador de verdades, novas entidades corpóreas muito diferentes de si e que muito destoavam das suas premissas dogmáticas; essas novas entidades corpóreas assenhorearam-se das disciplinas do Imperador, domesticaram-nas e extraíram delas novos conteúdos conceptuais mais ao seu encontro. O Imperador criou os mecanismos que lhe asseguraram o total controlo imperial, mas, ao criá-los, criou, igualmente, os mecanismos capazes de lhe destaparem a careca e, assim, fez-se luz e descobriu-se que o género é criação; que o binário é imposição; e que a heterossexualidade não é destino.
Os novos saberes queer, saberes aprovados pelo selo científico, uma vez que são oriundos de instituições legitimadas a outorgar veracidade aos conceitos, tem impactado o espaço público; até então, as ruas permaneciam cinzentas e binárias, do macho e da heterossexualidade e os novos saberes têm-nas queerizado. Os novos conceitos queer deram e têm dado aos corpos uma novíssima narrativa científica capaz de lhes amplificar o espetro; deu e dá aos corpos novíssimas maneiras de encararem aquilo que é e pode um corpo; traçaram e têm traçado inúmeras possibilidades de emancipação corporal... entretanto, o Imperador caiu em si e percebeu que, caso não se ponha a pau, as ruas deixam de lhe pertencer.
Mas não nos iludamos, por mais que nos infiltremos nos edifícios do saber oficial, que produzamos novos saberes e que tenhamos “algum” pouco poder de os validar e de os fazer chegar ao espaço público, as disciplinas criadas pelo Imperador continuam ao serviço do Império, com os autómatos do costume ao dispor da vontade do Imperador que continua a querer a mesmice e as ruas do costume: ruas de homens, masculinos, heterossexuais e de mulheres, femininas, heterossexuais; as ruas do cor-de-rosa nas meninas e do azulinho nos meninos; as ruas de corpos amestrados à uniformidade monótona e às morais normativas. As ruas dos corpos que se sentem obrigados a envelhecer e a fazer corresponder o seu corpo e as suas roupagens à idade, que mais não é do que um número injectado nas cabeças robóticas que a aceitam como algo que deva moldar comportamentos não-orgânicos, porque o Império quer que assim seja, para não criar confusão entre a homogeneização pretendida: corpos novos, corpos de meia-idade, corpos velhos; menino, homem, senhor; menina, mulher, senhora. Homens-Pais com Mulheres-Mães.
Face à crescente queerização dos corpos e das ruas, o Império reage, “conservadorizando” os seus autómatos tornando-os mais quadrados que os próprios quadrados que vieram antes deles; e temos visto, por todo o lado, uma maior oposição às novas verdades corporais que têm conquistado o espaço de caminhar pelas ruas. O Imperador não quer que se saiba das muitas possibilidades que um corpo tem; não quer que os corpos se tornem autónomos e independentes e que escapem ao seu suposto destino normativo depois de verem, a passar por si, pelas ruas, corpos como eles, mas livres, diferentemente deles, que continuam domesticados pelo Império castrador que lhes estupidifica a vontade e, com isso, as vontades do próprio corpo.
A queerização veio romper com o boring que há na paternal homogeneidade patriarco-imperial: se todos os conceitos que pousam sobre um corpo são tão e somente conceitos, tudo lhes é permitido (aos corpos) e nada se lhes desadequa; liberta a mente e libertar-te-ás das amarras condicionantes que mentes amestradas colocam sobre a matéria. TODAS, TODES e TODOS têm, agora, e graças ao queer, que em muito ultrapassa a própria teoria que nomeia, essa possibilidade de “independentização” corporal... ultrapassa (indo além da própria teoria que nomeia) porque abre portas e janelas, e com isso possibilidades, ao corpo de uma forma geral, seja corpo queer, ou não, enquanto espaço vazio à espera de novos e mais fluídos significados; ainda que sejam os corpos queer a dar o mote e quem primeiramente corporaliza a revolução do sur(real) nos passeios deste país.
Pá, que se f**a a obrigatoriedade de corresponder a algo expectável; que se f**a a obrigatoriedade do binário. Desarrumemos os termos, as convenções e enchamos as ruas de confusão conceptual. Quem não gostar e quem não entender é quem perde e tem bom remédio, que feche os olhos (os de cima e os de baixo).
O preconceito é estrutural, já se sabe; mas, mais à superfície, há o preconceito consciente e militantemente activo desses já mencionados quadrados que têm nariz, olhos e boca e em tudo se parecem a um ser-humano, figuras geométricas frustradas e de mal com a vida; e depois, há o preconceito ignorante, isto é, que deriva da falta de conhecimento sobre tudo aquilo que nos é estranho e que desaparece, ou diminui, assim que o ouvido e o olhar se familiarizem com a diferença. São os corpos livres que vêm contribuir para que estes últimos, sobretudo se forem familiares ou de relação afectiva minimamente próxima deste segundo tipo de preconceito, se tornem menos preconceituosos, auxiliando-os, até, num eventual processo de redesignação de si mesmos; é por isso e é por tudo isto que é importante referir a importância da Jacques (para aquele que vê mas que prefere dizer que não vê porque fica mal dizer que se vê, e para aquele que vê, não é preciso apresentações, mas para quem não vê, a Jacques é concorrente no mais recente Big Brother), a importância da Jacques na rua, a importância da Jacques na televisão; da Jacques que é não-binária e que quer ser tratada por ELA sem deixar de ser, por ser tratada por ELA, não-binária. É a Jacques que vem libertar as cabeças, primeiro, para que se possam libertar os corpos a seguir.
O 25 de Abril de 1974 trouxe a liberdade para as ruas; que a revolução queer possa trazer LIBERTAÇÃO.
António João