Entre trocas e baldrocas - sou intersexo
Nasci a 18 de Maio de 1989 em Viseu. Entre trocas e baldrocas vim parar a Lisboa, onde estou, depois de ter corrido algumas cidades do país a fazer arte e activismo de forma voluntária (enquanto servia às mesas ou cozinhava para centenas de pessoas), ter morado em Hamburgo, Alemanha e durante os últimos dois anos ter passado por quase uma dezena de países europeus.
É aí que quero chegar, à minha passagem por todos esses lugares, da melhor forma cronológica que me relembre e saiba bem partilhar.
Comecei em Bolonha em 2014, e depois disso já lá fui outra vez este ano. É verdade que a minha vida de activista é muito mais desinteressante do que a maioria das pessoas pensa – pensam elas que passa por uma vida de classe média a viajar por essa terra fora. Podia contar-vos as vezes que fiquei retido num país por não ter dinheiro para regressar ou ter-me sido cancelado o bilhete de avião que me tinha sido comprado em avanço – apenas por curiosidade acrescento que nestes últimos dois anos só comprei dois bilhetes de avião, que depois me foram reembolsados.
Serão luxos para pessoas que não encaixam na definição médica/biológica (e sociológica também) do que é ser tipicamente masculino e feminino. Eu sei que estão a pensar em inúmeras expressões, algumas delas menos próprias, eu sei, mas acreditem que na maioria das pessoas que não se encaixam nessa definição, o efeito de palavras e expressões como “hermafrodita”, “intersexual”, “DDS (doenças do desenvolvimento sexual)”, “dois sexos”, “anomalias sexuais”, “aberrações”, “nem carne nem peixe”, “o melhor de dois mundos”, não tem o melhor resultado. Todas e mais algumas destas expressões são definições que as pessoas nos atiram por pensarem que nós somos algum tipo de ser humano muito fora da norma aceitável a nível de características sexuais.*
Pessoas intersexo é um termo também usado pela comunidade médica, mas muito mais usado entre nós como forma de conforto, emancipação e muitas vezes também de activismo, é verdade. A nossa realidade é usualmente escondida e tratada como doença, quando existem mais de 40 variações clinicamente reconhecidas para nós, pessoas intersexo.
Estudos revelam que uma em cada 200 pessoas é intersexo. São recorrentes os casos dentro das famílias, entre irmãos/irmãs, etc. Estes pequenos factos que vos posso dar nunca serão suficientes para perceber todo o espectro. Não somos um novo conceito a ser agregado a uma sigla, e por mais que vos surpreenda a maioria da população intersexo não se encontra na comunidade LGBT(I). Muitas dessas pessoas vive real e satisfatoriamente à parte desta comunidade que em muitas questões pode ter similaridades. As pessoas intersexo podem ser hetero, bi, lésbicas, panssexuais, assexuais, gay, mulheres, homens, cis (não trans), trans, não-binárias.
Assim como ser-se gay, bi, lésbica, se refere à orientação sexual, ser-se trans, não-binário refere-se à identidade de género e ser-se intersexo refere-se às características sexuais.
Assim como ser-se gay, bi, lésbica, se refere à orientação sexual, ser-se trans, não-binário refere-se à identidade de género e ser-se intersexo refere-se às características sexuais.
Nós sofremos discriminação baseada nas nossas características sexuais. E temos como principais demandas o fim das cirurgias genitais em bebés e crianças, assim como as supostas “correcções” e normalizações dos nossos corpos através de fármacos e/ou intervenções cirúrgicas no geral. Por mais surreal que pareça, em 2016 apenas um país no mundo criminaliza estas cirurgias, e esse país é Malta.
Em Portugal e à volta do mundo temos andado quase em uníssono a reivindicar as mesmas coisas. E é aí que a Ação Pela Identidade – API entra quando, em 2011, veio a público, já com as questões intersexo na manga. Onde eu já estava, mas com medo de dar a cara, para três anos mais tarde decidir que o receio tinha alcançado o seu limite e a nossa organização ia agora ter uma pessoa à sua frente sem medo de dar a cara e a alma.
Chegar a esse ponto, durante anos de desvalidação e mentiras, por partes diversas, mas na maioria da parte médica – eu consegui encontrar um ponto onde a minha auto-estima e orgulho por ser intersexo e negro me permitissem falar sobre isso, mesmo que o medo me batesse todas as noites. Foi só depois de sair do país é que consolidei a minha força e fiz os contatos necessários para investir numa comunidade e activismo que precisa de variadas mãos e caras a trabalhar e a dar forma a uma realidade que, ainda hoje, é escondida das próprias pessoas que a têm.
O meu coming out público foi na Audição Pública do Bloco de Esquerda em 2015, e nesse entretanto tenho dado entrevistas, inclusive do outro lado do oceano, para o Brasil e para os Estados Unidos na Advocate Magazine, por exemplo.
Voltando a 2015: fui ao meu primeiro Encontro Europeu Intersexo, em Atenas, fiz dois grandes workshops em duas organizações europeias LGBT, uma delas mudou o seu nome e sigla como fruto desse meu trabalho. A nível nacional e através da API, as questões intersexo também entraram na agenda política e acabaram sendo concretizadas no actual programa do Governo.
No entretanto, fiz parte da elaboração e facilitação, enquanto educador, de uma sessão de estudo no Departamento da Juventude do Conselho da Europa, no Centro Europeu da Juventude de Budapeste, no passado mês de Abril.
A minha colaboração com várias organizações de Direitos Humanos e LGBTI estende-se, e repercutiu nas várias reuniões que tive com os ministérios e secretarias de estado do nosso Governo Português enquanto único activista e representante no nosso contexto dentro e fora do país.
Entre viagens e comemorações do dia 17 de Maio de 2016, primeiro Dia Nacional Contra a Homofobia e Transfobia, a Ação Pela Identidade – API foi convidada pela Comissão Para a Igualdade e Cidadania - CIG para dar um workshop sobre identidade de género e intersexo na Presidência do Conselho de Ministros, com a presença de representantes dos diferentes ministérios e sectores.
Dias antes tinha estado em Copenhaga no IDAHO Forum, que todos os anos ocorre numa cidade europeia e leva representantes governamentais, assim como não-governamentais, a discutir e a partilhar as melhores práticas, na maioria ao nível nacional, do Conselho da Europa ou da União Europeia. Eu tive o prazer de discursar no painel de encerramento sobre questões raciais e intersexo, como único representante português presente aquele ano.
Todas estas são vitórias que eu luto com os recursos disponíveis. A luta pela visibilidade tem muitas camadas.
Assim como eu, ao crescer, não via pessoas com quem eu me identificasse na televisão, eu não quero que isso aconteça com os meus irmãos ou com os meus sobrinhos.
Todas estas são vitórias que eu luto com os recursos disponíveis. A luta pela visibilidade tem muitas camadas.
Assim como eu, ao crescer, não via pessoas com quem eu me identificasse na televisão, eu não quero que isso aconteça com os meus irmãos ou com os meus sobrinhos.
Os exemplos que damos, e o tempo de antena e voz que disponibilizamos às pessoas que estão fora da norma, representa mudanças no nosso futuro, no das nossas crianças – ainda para mais se essas crianças sofrerem um ambiente de secretismo sobre as suas características corporais internas e/ou externas ao ponto de serem coagidas a escondê-las para o resto das suas vidas, achando que não há mais ninguém no mundo como elas.
A única coisa que eu posso garantir é que no meio de toda a tua diferença, a tua particularidade e identidade nunca irá ser igual a de outro alguém. Sejamos sinceros: as pessoas intersexo não são erros da natureza, mas sim a personificação de que ela existe.
Eu, Santiago, sou uma pessoa intersexo. A razão pela qual vos detalho o meu trabalho é para abrir caminho para mais pessoas como eu, em todas as esferas da vida e para se saber também que alguém neste país trabalha estas questões e que existe. Espero que traga bons resultados.
Santiago D’Almeida Ferreira, Presidente e fundador da Ação Pela Identidade – API, artivista antiracista e intersexo e director criativo.
É escritor, blogger e artista performativo há mais de uma década. Recentemente ingressou na FCSH na Licenciatura de Antropologia.
Blog: www.santeago.blogspot.pt
Instagram: @yagombanda
*Para mais informações sobre intersexo, DDS (inglês DSD), doenças do desenvolvimento sexual, “hermafroditismo”, intersexual, ou se tens dúvidas pessoais contacta associacaopelaidentidade@gmail.com ou www.facebook.com/apidentidade