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Mas porque é que eu tenho que lutar pelos direitos das pessoas trans?

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Está a chegar ao fim mais um mês de Junho, com todas as suas dicotomias: celebração, por um lado, luta por outro. Amor e alegria, mas também raiva e luto. Orgulho do caminho que já percorremos, e receio pelo caminho que falta percorrer. A consciência de que fazemos parte de uma comunidade em que todas as letras da nossa sigla são iguais, mas algumas são mais iguais que outras. 

Hoje quero falar contigo sobre a letra T. Quero falar contigo, pessoa cisgénero cuja atenção foi despertada pela pergunta no título. Talvez porque as pessoas trans já façam parte da tua luta, mas achas que sempre é bom ter mais argumentos. Talvez porque és queer, ou queres lutar pelos direitos de pessoas queer, mas não conheces pessoas trans, não tens pessoas trans como referências de pensadores, educadores, artistas e activistas, e por isso tens dificuldade em perceber o que elas têm a ver contigo, em vê-las como parte da tua comunidade. Ou talvez este título te tenha chamado a atenção porque já decidiste à partida que não tens nada que lutar pelos direitos de pessoas trans e estás à espera que este texto valide a tua opinião. Nesse caso, aviso-te desde já que não é isso que vou fazer. Mas convido-te a ler de qualquer maneira, e quem sabe não mudas de ideias?

A questão, então, é a seguinte: num mundo em que tantos grupos de pessoas são injustiçados de tantas maneiras diferentes, porque é que as pessoas trans em particular merecem a tua atenção? Comecemos pelo óbvio:

 

Os direitos das pessoas trans estão sob ataque

Este é o argumento que vais ouvir mais vezes: deves apoiar esta causa, porque esta causa precisa do teu apoio. É possível que já te tenhas dado conta da onda de ódio anti-trans que se tem vindo a levantar nos últimos tempos. Pelo sim, pelo não, ficam alguns dados:

Um estudo realizado em 2021 concluiu que pessoas trans nos Estados Unidos têm quatro vezes mais possibilidades de serem vítimas de crimes violentos do que pessoas cis. No mesmo ano, a Forbes publicou um artigo onde revelou que 52% de pessoas trans contemplaram o suicídio em 2020. Este ano, foram até agora propostos 558 projectos de lei anti-trans nos EUA. 

Entre 2021 e 2022, o Reino Unido registou um aumento de 56% nos crimes de transfobia. Em Portugal, um estudo da Universidade do Porto revelou que as escolas não são um espaço seguro para alunos queer, sendo que quase metade dos alunos trans incluídos no estudo afirmaram sentir-se inseguros ao usar as casas-de-banho e balneários das suas escolas, e acusaram também a recusa dos professores em usar os seus nomes correctos.

O ódio contra pessoas trans tem sido gritante nos últimos tempos, mas não é de agora, e não vem apenas de fora da comunidade queer. Quer seja de propósito, quer seja por ignorância ou desinteresse, as pessoas queer cisgénero têm um histórico na melhor das hipóteses pouco solidário e na pior das hipóteses hostil para com pessoas trans – em especial pessoas trans racializadas. Um exemplo claro disso é o famoso discurso “Y’all Better Quiet Down” da activista trans e latina Sylvia Rivera que, durante uma parada do orgulho em 1973 em Nova Iorque, foi intimidada pelo público, recebendo vaias até sair do palco.

 

A comunidade queer está em dívida para com as pessoas trans

Se o primeiro argumento se baseia na empatia e na solidariedade, este baseia-se na reciprocidade. Se és uma pessoa queer, em vez de pensares no quanto as pessoas trans precisam de ti, já pensaste que se calhar és tu que precisas delas? Este discurso de Sylvia Rivera lembra-nos de um facto importantíssimo: as pessoas trans sempre estiveram na linha da frente da luta queer.

Como comecei por dizer, o mês de Junho é um mês de dicotomias, e uma das maiores dicotomias de todas é o recorrente esquecimento das pessoas trans por um movimento que não existiria como o conhecemos hoje se não fosse por elas. 

Sylvia Rivera não foi apenas uma activista. Ela foi, juntamente com Marsha P. Johnson, pioneira da luta pelos direitos LGBTQIA+, um dos nomes principais na revolução de Stonewall e uma pessoa que dedicou a sua vida à luta pelos direitos das pessoas queer – todas as pessoas queer.

Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson não são de todo as únicas pessoas trans que dedicaram, ou ainda dedicam, a vida à protecção dos direitos da comunidade queer, mesmo com todos os riscos. Este ano, na véspera do mês do Orgulho, a activista Qween Jean foi presa em Nova Iorque durante um protesto pacífico por ela organizado. Relatos indicam que havia mais polícia presente do que manifestantes, e que Qween Jean parecia ser o alvo desde o início.

No Brasil, o país do mundo com o maior índice de assassinatos de pessoas trans, figuras como Erika Hilton, Benny Briolly e Linda Brasil foram eleitas para cargos políticos e trabalham activamente para assegurar os direitos não só de pessoas queer como de todas as pessoas que representam nos seus respectivos estados, apesar das ameaças constantes que recebem da população e de colegas da política. E em Portugal, Keyla Brasil, que recentemente foi sujeita a uma onda de ódio e ameaças muito violentas e muito públicas, continua debaixo dos holofotes a representar a comunidade queer, tendo-o feito mais recentemente no palco da Marcha do Orgulho de Lisboa.

Aproveito para ressaltar que a maior parte das mulheres que aqui mencionei são mulheres racializadas – outra parte da comunidade que é recorrentemente esquecida e que, mesmo assim, está sempre na linha da frente na defesa dos nossos direitos.

 

Primeiro levaram as pessoas trans, e eu não disse nada…

Pode ser que, mesmo assim, não te consigas identificar os suficiente com esta causa. Mas atenção: se és uma pessoa queer, mesmo que não reconheças pessoas trans como parte da tua comunidade, para quem está de fora somos todos farinha do mesmo saco.

As pessoas trans, por serem quem está mais distante da norma imposta, por serem frequentemente mais visíveis na sua não-normatividade, e por estarem desprotegidas mesmo dentro da comunidade queer, são o bode expiatório perfeito, e sofrem sempre os piores golpes. Mas a opressão das pessoas trans é um caminho que leva inevitavelmente até ao resto da comunidade – isso, aliás, já está a acontecer.

O Relatório Pride 2023 registou um aumento de 9.4% no discurso de ódio contra pessoas queer em redes sociais globalmente, e uma diminuição de 41,25% nas mensagens de apoio. A Europa e a Ásia Central atingiram em 2022 os maiores índices de violência contra pessoas queer na última década. Em Portugal, que desceu pelo segundo ano consecutivo de posição no Ranking dos Direitos LGBTI na Europa e já não está no top 10, as mensagens de apoio diminuíram 12,05% entre 2019 e 2022, e o discurso de ódio aumentou 184,85%.

Outro dado revelador é que, entre os muitos projectos de lei reacionários que estão agora a ser discutidos e aprovados nos Estados Unidos, estão propostas que atacam a arte drag. Isso mostra-nos que o alvo deste ódio não são apenas as pessoas trans, e sim qualquer pessoa ou comportamento que de alguma forma não se encaixe na concepção binária de género.

 

Às pessoas hétero que estão a ler isto: os vossos direitos também estão em jogo

E o que será uma pessoa ou comportamento que não se encaixa na concepção binária de género? Que níveis de masculinidade, feminilidade ou androginia são permitidos, e a partir de que momento, em que corpos, são considerados crime? Quem toma essa decisão?

Preciso, para terminar, de deixar de falar com a comunidade queer por um momento, e dirigir-me directamente a ti, pessoa hétero que chegou até esta parte do texto. E, se chegaste até aqui, talvez consigas adivinhar o que tenho para te dizer: a luta pelos direitos das pessoas trans também te diz respeito. O caminho que começa na opressão de pessoas trans e passa pela opressão de toda a comunidade queer termina com a tua opressão - e é um caminho muito mais curto do que tu pensas. 

No Mundial de Futebol de 2011, as jogadoras da Suécia tiveram que mostrar a genitália para provar que eram do sexo feminino. Várias mulheres cis relataram ao longo dos anos terem sido humilhadas e expulsas de casas-de-banho públicas sob acusações de não serem realmente mulheres. Em 2022, uma mulher cis foi assassinada na Geórgia depois de ter sido confundida com uma mulher trans. Ser trans é perigoso, mas ser incorrectamente mulher ou incorrectamente homem também pode ser fatal. E tendo em conta que alguns dos projectos de lei propostos nos Estados Unidos contemplam a proibição total da educação sexual nas escolas (discussão que também esteve muito acesa no Brasil nos últimos anos), sabemos que as regras sobre a forma certa de performarmos o nosso género podem ficar cada vez mais rígidas.

Pode ser que a histeria anti-trans não chegue com tanta força a Portugal. Pode ser que tu nunca tenhas que provar a ninguém que o teu género corresponde ao teu sexo biológico. Mas talvez já te tenhas apercebido que todas estas problemáticas já te afectam, mesmo que de forma mais subtil. Desde o momento em que o teu género foi anunciado ao mundo, um caminho foi escolhido por ti. Um caminho que não é necessariamente mau ou bom, mas que te obrigou a abrir portas sem que ninguém te perguntasse se as querias abrir, e deixou mil outras fechadas a sete chaves, sem que tu nunca contemplasses explorá-las porque não sabias sequer que lá estavam.

As permissões e proibições impostas por esse caminho nada têm a ver com as capacidades ou limitações do teu corpo, e no entanto, passas boa parte da tua vida a acreditar que são características naturais e inerentes, porque não conheces outra coisa. Possivelmente até já sofreste castigos, mais ou menos severos, pelos artifícios que não foste tão capaz de naturalizar. Talvez já tenhas ouvido que “um homem não chora” ou que “isso não são modos de uma mulher se comportar”. Talvez já tenhas ouvido coisas muito piores.

Já pensaste na quantidade de versões de ti que poderiam ter existido, se soubesses que havia mais do que uma opção?

As pessoas trans e não-binárias tornam visíveis todas as portas. Abrem as que querem abrir, deixam fechadas as que não querem, mas nunca as ignoram. Não admitem apenas dois caminhos, e sim caminhos infinitos, que não são opostos uns aos outros e que em vez disso se vão cruzando, interrompendo, fundindo.

Por isso, sim, é importante ter a consciência de que as pessoas trans precisam do apoio do resto da sociedade. Mas é muito mais importante reconhecermos o quanto as pessoas trans têm a contribuir, e o quanto nos podem ensinar. Se aprendermos com elas que há inúmeras formas de sentir, experienciar e expressar o nosso género, trabalhamos na nossa própria desconstrução e asseguramos um futuro onde podemos viver mais livres e com muito menos limitações. E contribuimos para a criação de uma comunidade composta por todos nós - pessoas cis e trans, hétero e queer, e todas as nuances que houver pelo meioonde todos são acolhidos, respeitados e protegidos, onde todos precisamos uns dos outros, e podemos contar uns com os outros. Uma comunidade onde somos, no melhor dos sentidos, todos farinha do mesmo saco. 

 

Maria Kopke

 

Fontes:

file:///C:/Users/joao/Downloads/annual-review-2023.pdf

https://www.thepinknews.com/2022/10/06/hate-crimes-reach-all-time-high-government-report/

https://williamsinstitute.law.ucla.edu/press/ncvs-trans-press-release/

https://www.forbes.com/sites/dawnstaceyennis/2021/05/19/terrible-time-for-trans-youth-new-survey-spotlights-suicide-spike---and-hope/?sh=647f597b716e

https://www.acegis.com/2022/03/375-pessoas-trans-assassinadas-no-ultimo-ano/

https://www.politico.eu/article/anti-lgbtq-violence-europe-highest-report/

https://ilga-portugal.pt/portugal-cai-mais-duas-posicoes-no-ranking-dos-direitos-das-pessoas-lgbti-na-europa/

https://esqrever.com/2023/06/21/redes-sociais-discurso-de-odio-contra-pessoas-lgbti-aumenta-185-e-apoio-diminui-12-em-portugal/

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/

https://www.ilga-europe.org/sites/default/files/2023/portugal.pdf

https://translegislation.com/

https://www.them.us/story/qween-jean-nypd-arrest-pride-month

https://www.publico.pt/2023/06/12/p3/noticia/jogadoras-suecia-mostrar-vulva-jogar-mundial-2011-2053072

file:///C:/Users/joao/Downloads/annual-review-2023.pdf