Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Dezanove
A Saber

Em Portugal e no Mundo

A Fazer

Boas ideias para dentro e fora de casa

A Cuidar

As melhores dicas para uma vida ‘cool’ e saudável

A Ver

As imagens e os vídeos do momento

Praia 19

Nem na mata se encontram histórias assim

Neste mês do orgulho a nossa maior desobediência civil é estar vivo

Bia Ferreira.jpeg

Bia Ferreira, cantora negra e lésbica usa a palavra como tecnologia do desconforto. A luta contra o racismo e a lgbtfobia é feita pela palavra e pela participação do público. O concerto nos Jardins de Verão da Fundação Calouste Gulbenkian terminou com o canto colectivo que serviu de aviso para aqueles que negam os impactos do racismo e da homolesbotransfobia na vida concreta das pessoas: “A conta vai chegar!!!

 

Final de tarde, jardins da Gulbenkian, ambiente jovem e descontraído. Bia Ferreira pega no seu violão e saúda os presentes. Este concerto é o início de uma tour da cantora brasileira pela Europa com 45 concertos em mais de sete países. Regressa em Agosto e em Setembro. 

Primeiros ataques às notas musicais e às palavras funcionam como importantes dispositivos de desconforto e reflexão. A primeira música abre com a energia de Exu, entidade da abertura dos caminhos. As pessoas ainda estão sentadas. 

Cada concerto de Bia Ferreira é um momento de encontro para se pensar num mundo cada vez mais complexo e marcado pelo ódio e o preconceito. Bia Ferreira inscreve-se neste processo de atenção e cuidado. Neste mês do orgulho refere que está “muito feliz de fazer parte desse processo, todo desse ano, porque acho que o Brasil é o país que mais mata população LGBTQIA+ no mundo e, sendo uma mulher negra, dobram-se as chances de não estar viva”. Estar viva e ligar as pessoas pela palavra e pela poesia.  

WhatsApp Image 2023-07-01 at 11.51.10.jpeg

As próximas palavras falam da mulher, das mulheres que são violentadas pelo mundo do patriarcado. As mulheres na audiência cantam com Bia Ferreira e batem palmas. Cantam as músicas e sorriem, levantam os braços, sinal de luta e de combate. Para Bia, a arte e a música são importantes tecnologias para fazer pensar e reflectir. Pensar nas injustiças, diagnosticar as curas. “As pessoas que vão ter acesso à minha arte aqui, que vão a algum concerto, a algum lugar onde eu vá falar, elas se sentem representadas porque eu acho que o nosso meio é silenciado e invisibilizado”, refere a cantora. 

Séculos e anos de invisibilização fazem das comunidades LGBTQIA+ especialmente vulneráveis. Mais ainda se interseccionarmos a raça e o género nessas “opressões” diárias, quotidianos marcados pelo ambiente de pós-colonialidade. Lisboa e Portugal são para Bia Ferreira espaços onde esta reflexão carece ser feita e deve ser aprofundada. Um debate difícil quando, “principalmente aqui em Portugal onde se nega a existência do racismo, imagina a existência da LGBTfobia”, refere Bia Ferreira. 

Ataca mais umas notas, faz beatbox e ritma as palavras que ecoam pelos jardins da Gulbenkian, lugar elitizado, onde os negros e negras não se viam e que a programação da Lisboa Crioula, de Dino Santiago quer inverter. “A gente vem de um processo de afirmação de quem nós somos a, uma sapatona no palco, fazendo arte sobre afecto eu acho que é bem pontual e abre espaço para pessoas como nós ocuparem lugares e sejam vistas”. Visibilizar todos e todas, trazer os temas que faltam debater, numa sociedade portuguesa que teima em discutir o racismo e a homolesbotransfobia. 

 

O afecto como arma contra o ódio 

O público canta com Bia Ferreira “vamos levantar a bandeira do Amor”. O amor e o afecto como importantes dimensões da luta. Bia Ferreira acredita que o afecto destrói barreiras abre espaço para o encontro. “Imagina que você só tivesse acesso a montes de coisas ruins”, destaca na nossa conversa. E aponta a solução “ afecto é a tecnologia de sobrevivência, o afecto é poderoso para nos mantermos vivos”. Vivos e em diálogo. Diálogos musicais com outras cantoras como Michele Mara, artista brasileira a viver no Porto e que partilha agora o palco com Bia Ferreira. As vozes destas mulheres fundem-se numa toada de amor e carinho. O público levanta-se e bate palmas.

Michelle Mara.jpeg

Michelle Mara

Para Bia Ferreira estas parcerias geram abertura de horizontes para uma sociedade portuguesa que evita o confronto com os aspectos mais sombrios da sua história. “Um desconforto que vem da negação de abordar a sua história. Então, eu venho para falar que Portugal é o país que vendeu o primeiro ser humano. Vendeu um ser humano. Eu estou no país que começou a escravização de pessoas e o tráfico negreiro e a desumanização dessas pessoas”, denuncia, referindo que, se fosse portuguesa, também teria alguma vergonha em destapar este passado. Mas não podemos continuar, acrescenta, a evitar esse desconforto. Porque mais tarde ou mais cedo “a conta vai chegar” e fala bem alto no seu microfone “e nós só estamos exigindo igualdade, imaginem se estivéssemos a exigir vingança”. 

“Eu quero que as pessoas guardem algumas mensagens”, destaca Bia Ferreira que usa a palavra e a poesia como espadas apontadas ao imobilismo e aos preconceitos. Este espaço de diálogo que transforma em concertos, compromete as audiências, levanta reflexões e interpela a luta por uma sociedade mais igualitária e horizontal. 

WhatsApp Image 2023-07-01 at 11.50.40.jpeg

No final, todos e todas ali presentes cantam “a conta vai chegar”, e nos interstícios desse refrão Bia Ferreira repa um pedido de desculpas por todos e todas as vítimas de racismos e homolesbotransfobia, os migrantes explorados e as mulheres vítimas de violência. Palavras que criam desconforto ligadas às palavras que curam. É essa a missão da arte de Bia Ferreira. 


André Castro Soares
Fotos: Pedro Gama