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João Barbosa

Antes de me virar para as Ciências Empresariais, fui aluno de Biologia. Quase que fui para Medicina, até. Isso foi nos tempos da minha adolescência, quando não-tão-secretamente, eu tentava construir uma carreira como escritor e músico. Quando me referia a isso, dizia que estava no bom caminho para ser um óptimo escritor, pois a maioria dos nossos grandes escritores eram todos médicos, cientistas.

Via na Ciência - pobre iludido - uma forma mais confiável de assegurar uma vida economicamente sustentável, em detrimento das Letras e da Música, pois  nasci e cresci num ambiente em que quando alguém se dizia escritor, artista, músico, nos perguntavam “e o que é que faz, realmente, na vida?”.

 

Não é por acaso. Todas estas profissões sempre foram e continuam a ser vistas como passatempos, porque continuam a ser observadas pelo prisma do consumidor do seu respectivo produto final - o espectador - que tende a realizar o seu consumo do «produto cultural» nas suas horas de lazer, não vendo este na higiene de consumir regularmente cultura, um investimento em si mesmo e uma forma de significar, de modo mais lato a sua participação no mundo. E assim, os criadores, muitas vezes têm de ter profissões paralelas, para poder pagar as suas contas, já que raros são os que podem - ou arriscam sem poder - depender da sua arte.

 

O espectador não entende que para aquele produto que ele compra ou a que assiste, há anos de estudo, de sacrifício, de investimento pessoal, de tentativas e erros, de noites mal dormidas, de relações destruídas, até. Há histórias de fome. Há histórias de injustiça pessoal. Há os workshops pagos do bolso do próprio artista, há o dinheiro gasto em manter os seus instrumentos operacionais, há os trabalhos pro bono “para o CV” e “para ter nome” e que não pagam a conta do supermercado e há, genericamente, a precariedade eterna de quem não sabe quando e se vai ter trabalho daqui a uns meses.

 

Quando o espectador compra um disco ou um livro - os que compram - ou se senta numa cadeira para assistir a um espectáculo, enquanto ele passa ali uma hora do seu tempo, ele não tem consciência das horas e horas e horas que múltiplas pessoas investiram para se chegar àquela hora (muitas vezes, com que retorno?).

 

Cresci num país em que um músico via os seus instrumentos de trabalho fiscalmente tratados como um luxo; um país que prefere discutir tricas de futebol e reality shows (e que depois trata a política como um misto das duas) do que consumir cultura que realmente o edifique; cresci num país que ainda hoje discute se a barbárie das touradas é cultura e cujo lobby reclama apoios do Governo, competindo com o Teatro, o Cinema, entre outras tantas Artes, pela participação de um Orçamento-de-Estado que atribui menos 1% a toda a actividade, há décadas.

 

A precariedade do Teatro é histórica, é facto: Shakespeare - por muitos chamado “o Bardo, o dramaturgo por excelência - conheceu-a bem: a sua companhia, que nem sempre era bem recebida, andava de terra em terra a representar, por vinténs, peças da sua pena (como “Romeu e Julieta” ou o “Rei Lear”) que se tornariam clássicos, nos séculos após a sua morte.

 

O que muita gente não sabe é que no tempo dele, as mulheres, eternamente apodadas de “falsas”, “mentirosas”, “fingidas”, estavam paradoxalmente proibidas (entre todas as outras actividades que lhes estavam vedadas) de representar.

 

Há até uma daquelas narrativas de origem que diz que o termo “drag” teria surgido para referir estes homens actores vestidos de mulheres. Uns dizem que é porque a roupa (vestidos) destes actores em trajes femininos se arrastava (to drag) pelo chão (em contraste com as roupas masculinas); outros dizem que é um acrónimo de “dressed as girl”, “dressed resembling a girl”, etc. O que é certo é que as mulheres não metiam o pé no palco. 

 

Entre 1601 e 1604 Shakespeare traz-nos “Otelo”. O texto refere claramente que ele não era branco. Mesmo assim, ainda hoje continuamos a ver as companhias de teatro a sistematicamente usar actores brancos para interpretar o seu papel. Em contrapartida, actores não-brancos são sistematicamente excluídos nos castings para personagens que não têm qualquer marca étnica, porque «marcam etnicamente personagens em demasia». 

 

A falácia é sempre a mesma: o actor é um mentiroso. Não está ali para se representar a ele mesmo, mas justamente o que ele não é. Quer-se que ele seja capaz de sair de si mesmo o mais possível. Quão mais ele for capaz de representar uma personagem que ele não é, tanto melhor ele será como actor. E assim se justifica que se seleccione constantemente os mesmos homens cis brancos a representar toda a humanidade.

 

Mas quando se pensa no contrário… “é complicado”. O homem cis branco acha estranho, caricato, cómico, improvável, inverosímil, para não dizer mau, ver-se representado por quem não é homem cis branco como ele. Engraçado, não é? Continuamos a agir como se o padrão fosse o homem cis branco e todos os outros devessem ser pensados em relação a ele. 

 

Depois há as polémicas como a da dobragem do filme de animação “Soul”. Primeiro, resmungam contra a evolução de personagens de modo a tornarem-se mais inclusivas; depois, reclamam e fazem chacota quando as personagens são criadas inclusivas de raiz; depois, até quando a história é finalmente sobre pessoas de um determinado grupo - por exemplo, uma determinada etnia - o pessoal do casting não consegue encontrar actores disponíveis da etnia respectiva para fazer parte do elenco; quando se faz barulho e, mais ou menos a contragosto, lá se consegue que seja contratado alguém do dito grupo social, o barulho passa a ser pela substituição.

 

Quase que se diria que a questão não é a natureza do trabalho do actor mas o facto de que um certo sector barulhento da sociedade tenta activamente resistir a que se dê menos lugar “aos mesmos” e mais a todos os demais. Depois, rematamos dizendo que não há um problema de representatividade na sociedade. Portugal dos brandos costumes, pois então. 

 

A polémica agora estalou porque uma performer e activista trans - Keyla Brasil - interrompeu a peça “Tudo sobre a minha mãe”, inspirada no filme homónimo de Pedro Almodóvar, reclamando de a personagem trans da peça ser - mais uma vez - representada por um homem e não por uma mulher trans. Com a morte de Eduarda Alice Santos, o momento não podia ser mais a propósito.

 

A companhia ouviu a queixa e removeu o actor do papel e contratou uma actriz trans (Maria João Vaz) para o papel. E teríamos ficado por aqui se o mesmo Portugal que acha o Teatro caro e/ou chato e que acha perfeitamente normal que certos pivots recebam salários milionários em detrimento do orçamento das televisões ser um pouco melhor distribuído para apoiar a produção cultural nacional, não tivesse subitamente acordado para “a grande necessidade de se apoiar os nossos actores”.

 

A polémica acendeu-se verdadeiramente quando o actor substituído na referida peça veio dar a sua opinião sobre o caso num post do Instagram, dizendo-se “violentado e castrado na sua Arte” por causa do protesto de Keyla Brasil e demais activistas ali presentes.

 

No contexto das mulheres trans, usar estes termos para tentar criar uma espécie de apelo à piedade, através de uma qualquer falsa equivalência retorcida é, no mínimo, um monumento ao egoísmo escabroso daquela declaração. O próprio actor assume que não foi despedido, já que ele faz - atente-se - outras três personagens na mesma peça

 

Vejamos: um actor não é um mero sujeito passivo. Ainda que numa condição precária, o actor escolhe não representar determinadas peças ou personagens contra as quais tem posições ideológicas fortes, claros desinteresses, etc. Também escolhe como representá-las, dentro de certos limites. É isso que distingue umas interpretações das outras. Mas entendo que para quem só enche a boca para falar de Teatro quando alguém se atreve a tentar mudar as injustiças do status quo, tudo isto lhe passe ao lado.

 

Os actores, inclusive, têm até normalmente mais palavra sobre a forma como uma peça é conduzida do que o que se pensa. Um bom encenador entende da necessidade de receber esses contributos, de maneira a levar a produção a bom-porto e os ensaios são um processo em que a peça vai evoluindo até à sua apresentação final. E mesmo ao longo de uma temporada a mesma peça, com as mesmas pessoas envolvidas, continua a evoluir. Até o próprio público contribui para isso.

 

O ponto é que o actor não é alguém que simplesmente “come e cala”. Muito menos um actor que é escolhido para representar quatro papéis na mesma peça. Já vimos actores a fazer barulho sobre o facto de as suas contrapartes femininas estarem a receber cachets abaixo do seu, por exemplo. Mas até ao post dele, o problema da peça “Tudo sobre a minha mãe” era maioritariamente da pessoa responsável pelo casting. Quando muito, podíamos acusar aquele actor de silêncio oportunista. 

 

Mas depois daquela declaração, estamos a falar de alguém que, por pior que esteja, está numa situação de vários privilégios em relação não só às colegas trans da sua profissão, mas também à dos seus restantes colegas; e estamos a falar de alguém que tem dificuldade em abdicar dos tais ditos privilégios: quando um mesmo actor é contratado para fazer quatro papéis diferentes, contribuindo para o desemprego de três dos seus colegas, se calhar o problema não está em contratar uma actriz trans para representar o papel de uma mulher trans; se calhar, essa não é de todo a conversa que deveríamos estar a ter. Talvez se começarmos a ter a conversa certa, começamos a perceber parte do que há de errado em todo o problema da Cultura e do Teatro em Portugal. 

 

É que se a precariedade é uma realidade para os actores homens cisgénero brancos (que é), ainda mais é para as minorias. Se as actrizes trans nunca são escolhidas, nem mesmo quando é para representar papéis de personagens trans, quando é que são chamadas? Já nem vamos falar do problema que é homens a fazerem-se passar por mulheres trans, vestindo roupa de mulheres, contribuindo para o estigma que confunde travestismo e drag queens com pessoas trans. Aconselho o documentário “Disclosure”, na Netflix, para quem quer saber mais sobre isso.

 

Em termos práticos o problema de que estamos a falar é do habitual açambarcamento de todos os papéis disponíveis para os mesmos de sempre; dos orçamentos para os mesmos de sempre; dos concursos e dos apoios para os mesmos de sempre. A distribuição mais justa dos recursos não é uma impossibilidade material. É uma questão de escolhas e de vontades.

 

Repare-se que após o protesto, Daniel Gorjão, o encenador, o primeiro a assumir que essa é a atitude correcta e necessária, conseguiu encontrar uma actriz trans que substituísse com igual qualidade o actor inicialmente seleccionado. Se assim é, por que é que não optaram logo por seleccionar a actriz trans? A resposta a isso… é a razão pela qual o protesto fez sentido, logo de início.

 

Querer fazer uma peça de teatro a partir de um filme que foi em 1999 um acto de activismo para denunciar e combater, entre outras coisas, a exclusão trans, ao mesmo tempo que em 2023 se perpetua a mesma exclusão daquelas de que a obra original fala é, já para não lhe chamar hipocrisia, pelo menos, falta de noção.

 

Reclamar de ter sido chamado à atenção por activistas trans, por colaborar em subverter uma obra que é ela própria uma acção de activismo, empatia e solidariedade pela comunidade trans, ainda para mais com termos como “violentado” e “castrado” é inqualificável.

 

Em vez de saudar o facto de que uma injustiça - social e profissional - foi revertida, há logo quem muito preocupado com a Cultura e com o Teatro venha definir o caso como “o fim da representação”. E quando as mulheres passaram a representar papéis de mulheres? Também foi o fim da representação?

 

Quantos destes vão ao Teatro, repito? Quantos conhecem o actor que estava na peça? Qual foi a última peça dele a que assistiram? Qual foi a última peça de teatro, em geral, a que foram? Quantos deles sequer viram o filme original? O que decreta o fim da representação é a crónica falta de públicos, não é a inclusividade e a representatividade.

 

A velha ideia de que o actor é um mentiroso e que, portanto, tem de lhe ser dada a oportunidade para tentar ser tudo o que não é, é apenas um argumento falacioso e hipócrita para manter o privilégio e que denuncia a ignorância sobre o que é realmente o trabalho de um actor, típico de quem tem pelo Teatro apenas um interesse de ocasião, quando dá jeito para promover mais uma exclusãozinha. 

 

Os melhores actores constantemente descrevem o seu trabalho com expressões como “tive de procurar dentro de mim esta personagem” ou “esta personagem tem tudo a ver comigo/tem muito de mim” ou “tive de recorrer às minhas memórias desse tempo para canalizar esta personagem", que demonstram que essa leitura do trabalho do actor é, mais uma vez, uma leitura de quem está a ver o Teatro de fora - nem sequer como espectador, mas um verdadeiro alienado da Arte.

 

Quando um actor interpreta uma personagem, não a (re)cria num vácuo. Qualquer bom actor indicará que tem de conseguir criar algum vínculo à personagem ou a sua interpretação será péssima. Ser actor não é criar uma pessoa nova do nada: é ser capaz de invocar as partes de si que fazem sentido para uma dada personagem. Mais do que um acto - perdoem-me o trocadilho - performativo, ser actor é, antes de mais, um exercício de empatia.

 

E se justamente tivesse havido mais empatia, nada disto teria acontecido e não teríamos de ainda hoje andar a ter estas discussões.

 

João Barbosa