Processo de Humanização em Curso: o livro
“Entendemos e aceitarmos o outro é sempre entendermo-nos e aceitarmo-nos a nós próprios: quanto mais compreendermos a diferença nos outros, melhor nos conhecemos e compreendemos a nós.” - Diogo Faro
“Processo de Humanização em Curso”, é a mais recente obra do humorista, activista e cronista, Diogo Faro, também conhecido e sobejamente polémico nas redes sociais por “Sensivelmente Idiota”. Uma obra que no início deste ano deu aso a uma digressão de espectáculos de stand up pelo país e que através de um registo pessoal, autobiográfico, do seu “lugar de fala”, Faro, nos convida a reflectir sobre problemas políticos, económicos, sociais e culturais sistémicos e estruturais e que, ainda que muitas vezes passados despercebidos socialmente, afetam invariavelmente a vida de tod@s nós.
Em oito capítulos principais, num total de duzentas céleres páginas, Faro convida-nos a reflectir sobre temas geralmente pouco queridos ou até renegados como: as desigualdades económicas; a emergência climática; o retorno dos fascismos e a ascensão dos populismos e extrema direita; do espectro das formas de opressão protagonizadas pelo racismo, machismo e homofobia; do preconceito e invisibilidade contra pessoas com necessidades especiais, entre outras questões que embora sejam “individuais” e experienciadas de forma diversa por grupos sociais historicamente oprimidos, não nos devem deixar de suscitar atenção, interesse e até incómodo (ênfase). Acredito que, para quem não é alheio a estas temáticas, através da escrita irónica e satírica do autor, se tenha não só revisto em descrições particulares citadas pelo autor como até lançado certa gargalhada ou sorriso entre provocações e piadas gráficas, mais ou menos coerentes ao longo do texto.
Partindo do contexto português, um dado importante na contextualização dos argumentos-chave da obra, sobretudo no que diz respeito ao capítulo “o eterno retorno dos fascismos” (a partir da obra de Rob Riemen), Faro fala-nos sobre poder, privilégio e preconceito, mostrando-nos a partir do seu próprio exemplo, enquanto homem cisgénero, branco, heterossexual e de classe média. Fala-nos da necessidade em sermos capazes de reconhecer, entre as diferenças e dificuldades que cada um experencia, o privilégio que também possuímos (e a lista de privilégios pode também ser indeterminável), de forma a não só tornar-mos inteligíveis as experiências de pessoas oprimidas por um sistema capitalista, colonialista e patriarcal, como é Portugal, como em sermos capazes de nos tornar-mos aliados na tarefa de alcançar uma sociedade mais justa para tod@s sem discrição.
Ainda, entre as diferentes e pertinentes provocações lançadas ao longo das questões anunciadas, convém ressalvar que esta não é uma obra académica, não é um manual para activistas, tampouco um livro de piadas secas sobre assuntos sérios, é na verdade, um livro que oferece um conjunto de reflexões e considerações interseccionais que nos mostra como todas elas estão de alguma forma interligadas. Também, não apresentando soluções, mostra como a solução mais óbvia passa pela mudança do comportamento individualista, infligido pelo capitalismo, para uma atitude de reflexão e acção colectiva solidária. Esta foi, sem sombra de dúvidas, das questões que mais marcaram a minha leitura, no qual reitero a pergunta: “Como podemos passar a identificar-nos uns com os outros pelos valores que defendemos e não pelas marcas que usamos?”. Quem diz marcas diz o bairro em que vive, o trabalho/profissão que desempenha, os estudos académicos que alcançou, o parentesco, etc. etc. Acredito que a resposta a esta questão possa personificar a solução para grande maioria das considerações interseccionais mencionadas.
Para concluir, não deixando de partilhar um último reparo, à medida que nos aproximamos dos últimos capítulos, considerando a importância de cada tema de uma forma horizontal e não a prioridade selectiva de cada um, percebemos que o foco de argumentação começa a perder certa força quando comparados com as exposições iniciais, podendo revelar ou menor proximidade com estes ou, talvez, em jeito de surpresa para um próximo trabalho. Confesso que gostaria de ver as questões relativas ao capacitismo e diversidade funcional melhor exploradas, se é que queremos levar adiante a ideia de interseccionalidade.
“Torna-te aquilo que és”, conceito de Friedrich Nietzsche, em Ecce Homo (1908), citado por Faro e que ilustra a importância da reflexão, da informação e do autoconhecimento para a transcendência pessoal, para a acção em prol do bem comum e de um mundo melhor, este, é sem dúvida, pelo menos para mim, a constituição de um “processo de humanização em curso”.
Processo de Humanização em Curso
de Diogo Faro
ISBN: 9789897842580
Editor: Objetiva
Ano: 2021
Idioma: Português
Páginas: 224
Preço: 15,50€
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.