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As relações de amizade e de carinho que mantenho com pessoas trans despertou em mim a necessidade de me juntar às suas demandas, às suas lutas e no debelar das suas desigualdades.

 

A minha empatia e leveza de ser criaram no João[1] uma segurança e sensação de resguardo que o levaram à confissão dos seus dilemas, medos, inseguranças e por vezes desesperança manifestadas. Ao assistir e testemunhar a transição social e depois a física do João, não pude obliterar as suas dinâmicas, lutas, vitórias e frustrações vivenciadas pelo próprio e a sua família. Fui igualmente sensibilizada para o fenómeno crescente do suicídio entre os jovens trans, na sequência de um abandono moral, financeiro ou emocional pela parte da família e da sociedade, e o João confidenciou que já era o segundo amigo, igualmente transexual, que «enterrava» por ter tirado a própria vida no seguimento de conflitos familiares. Desta forma, foi perceptível que podia estar perante um fenómeno onde de imediato propus investigar, nunca esquecendo que cumpria-me a missão de representar as vozes e as invisibilidades, assim como compreender e difundir as desassistências perpetradas a esta minoria.

As associações LGBTQI+ e os estudos científicos vão inventariando e fazendo promulgar as necessidades que imperam neste segmento da mesma forma que retratam e expõem as violências que as pessoas trans estão sujeitas, inclusive a falta de formação adequada das instâncias estruturais da sociedade, da população em geral e, por vezes, a práticas desadequadas do corpus médico no exercício em regime biomédico.

Outra legitimidade, e na minha opinião, uma grande falha no sistema, prende-se com a omissão do Serviço Social na equipa principal e multidisciplinar da URGUS[2]. Faz-se necessário a existência de um órgão que aja como garante no cumprimento dos Direitos Humanos e toda a sua envolvência interdisciplinar ao nível do bem-estar físico, psicológico e social (APSS), sem que a sua intervenção na URGUS, neste caso, seja secundarizada. Importa destacar o prejuízo da supressão dos Assistentes Sociais como parte integrante e fundamental em todo o processo de transição sexual, assim como ensaiar no realce dos benefícios de pôr a uso os domínios do Serviço Social, mormente na social advocacy, através da actuação do Assistente Social na desenvoltura desta dinâmica que envolve os actores, suas famílias e os contextos sociais e económicos em que se inserem.

O estudo que elaborei enquanto mestranda em Serviço Social na Universidade Lusófona em 2020, vem integrar e complementar as investigações que se escoram na temática da transexualidade e do suicídio, tendo como intento máximo o discernimento dos factores familiares e sociais que podem concorrer para comportamentos suicidas do jovem trans e auscultar a percepção do mesmo face à actuação do Serviço Social nas suas transições, perscrutando a necessidade de actuação do Serviço Social num processo de transição sexual. A investigação assentou numa metodologia qualitativa desenvolvida através de entrevistas semiestruturadas com recurso a guião a dez indivíduos transexuais masculinos que estivessem em processo de redesignação sexual.

Este estudo caracterizou que 5 dos 10 inquiridos tentaram o suicídio, 10 padeciam de ideação suicida e que 8 manifestaram práticas de para-suicídio. Como principais resultados revela-se uma forte incidência das questões familiares como fonte de desesperança, como a rejeição parental ou quando esta não ocorre, os jovens trans percepcionam um não reconhecimento da sua identidade pelos pais, mantendo estes o registo dos pronomes errados. O tempo de espera por consultas e/ou procedimentos no Serviço Nacional de Saúde é igualmente um stressor que potencia as ideações suicidas desta população, adiando a sua congruência e perpetuando sentimentos de opressão. A discriminação percepcionada evidencia-se ainda em período de relações lésbicas ante transição social/clínica. De todas as esferas que envolvem estes indivíduos, os participantes classificaram a categoria do suporte familiar a mais importante para resiliências salutares.

A estatística e a literatura atestam a forte incidência do suicídio ou comportamentos suicidas de pessoas trans em contextos de discriminação, preconceito, rejeição social e/ou parental. Assim, contribuir para que se alcance a normatividade nas práticas e que estas dêem lugar às desarmonias e incongruências de hoje, realçando os pontos que se consubstanciam responsáveis pelas insatisfações das pessoas trans, debelar invisibilidades e colaborar de forma construtiva para uma sociedade mais inclusiva, habilitada, responsável e instruída foram as minhas aspirações na execução deste estudo.

Desejar morrer para que o sofrimento acabe não tem que ser uma realidade na vida de ninguém, e nas sábias palavras de dois participantes deste estudo: “ (…) é muito importante nunca desistirmos dos nossos sonhos, abraçarmos tudo aquilo que é boas energias, abraçarmos todas as pessoas que nos dão apoio antes e durante a transição de género e acima de tudo nunca perder o foco” (sujeito a); “ Também quero dizer que a comunidade está toda para me ajudar. Todos os meus binders vieram de outros meninos. A (…) também me ajudou com muita coisa, temos que começar a abrir os horizontes e ver que afinal não estamos tão sozinhos assim quanto possamos pensar. Eu sei que emocionalmente pode haver muitas pessoas que só nos ajudam profissionalmente e não emocionalmente (…). Eu acho que era importante ter sabido disto quando estive tantos anos para sair do armário e não sei para quê… já podia estar tão mais avançado. Não se escondam tanto e peçam ajuda, porque se eu tivesse pedido eu teria começado isto mais cedo e tinha arranjado formas de me mexer muito mais rápido…” (sujeito b).

 

Estudo completo brevemente na página ReCil Lusófona - https://recil.grupolusofona.pt/handle/10437/10907

 

Ally por vocação, defensora por missão

Vânia Cavacas Pires

Licenciada em Ciências Sociais, Mestre em Serviço Social, Doutoranda em Serviço Social; Formadora Certificada nas áreas LGBTQI+

 

Organizações com serviços de apoio às pessoas LGBTI+

AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género

APAV - Associação Portuguese de Apoio à Vítima - Rede Nacional de Gabinetes 

API - Acção Pela Identidade

API – Associação Plano i (Matosinhos)

Casa Qui - Associação de solidariedade social pela inclusão e bem-estar da população LGBT

ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero

Linha LGBT - Linha Telefónica de Apoio e Informação LGBT

Opus Diversidades – Defesa e promoção dos Direitos Humanos da comunidade LGBTI+

Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

rede ex aequo -  Associação de jovens LGBTI e apoiantes: geral@rea.pt

ReNascer -Serviço de Saúde Mental

SOS Voz Amiga - um serviço de ajuda pontual em situações agudas de sofrimento causadas pela Solidão, Ansiedade, Depressão e Risco de Suicídio: 21 354 45 45,  91 280 26 69 ou 96 352 46 60. (entre as 16 e as 24h00)

 

 

Notas:

[1] Nome fictício

[2] Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual – URGUS. Consultado em 12/02/21. Em https://www.dgs.pt/ficheiros-de-upload-2013/urgus-pdf.aspx