"A Mulher Não é Inferior ao Homem"
“Se cada homem tornasse público aquilo que pensa sobre o nosso sexo, a opinião de que fomos criadas apenas para seu uso seria unânime, de que servimos apenas para gerar e zelar pelos filhos nos primeiros anos de vida, para tratar dos assuntos da casa e para obedecer, servir e satisfazer os nossos senhores, ou seja, eles mesmos, naturalmente.” Sophia, A Mulher Não é Inferior ao Homem (Ideias de Ler, 2024)
A mulher não é inferior ao homem é uma obra única sobre a luta pela igualdade de género na história do ocidente. Escrita em 1739, é considerada uma das primeiras obras feministas – ou melhor dizendo, protofeministas, sendo que, os feminismos enquanto movimento político surgiriam nos finais do séc. XIX -, a qual procura encontrar razões para a até então defendida “natural” superioridade dos homens face às mulheres. A resposta é evidente, como o título indica.
Dividido em oito capítulos principais, a autora (no qual não se conhece a identidade, sabendo tratar-se de uma jovem mulher de classe alta – tal como Mary Astell ou Mary Wollstonecraft), descreve-nos subtilmente a época em que escreve, quer pela forma como no conteúdo do texto.
O conteúdo é claro e a sua bizarra actualidade torna-o ainda mais fascinante. Quanto à forma, basta dizer que este é um texto do séc. XVIII, século marcado pela Filosofia das Luzes, pelo Iluminismo, pelo primado da razão. Uma época em que a burguesia se consolidava e reclamava liberdade, entre as quais mulheres burguesas – no qual Sophia – que reivindicam a sua participação na gestão da coisa pública e de direitos civis: o direito ao ensino, ao trabalho, ao salário, o direito ao voto.
E é assim que encontramos o texto, a tentativa da autora em encontrar uma explicação racional para a aparente diferenciação entre géneros, as suas causas e quem os responsáveis por sustentar essa tese tão nefasta para o feminino.
No centro da discussão está o antigo conceito romano do jus naturale (direito natural) que atribuía ao homem direitos e privilégios inatos pela sua condição de homem – ou melhor, pelo sexo atribuído à nascença – colocando a mulher numa posição de submissão, dependência e imbecilidade face ao seu “amo” ou “senhor soberano”. Sim, um espécime de regime de escravatura de género como numa antevisão aos estudos e teoria pós/de-colonial.
“Que poderosa superioridade da razão têm então estes rapazes demasiado crescidos sobre as crianças mais pequenas? Ambos argumentam com base nas aparências: os primeiros vêem, a partir das diferentes posições da Terra e do Sol, que há movimento num deles; e, por não sentirem a agitação da Terra, concluem, pois, precipitadamente, que é o Sol que se move à volta deles e não eles à volta do Sol. As segundas, alheias ao movimento de um coche, imaginam, quando num, que são as casas que passam por elas e não elas pelas casas. Não são ambos guiados nos seus julgamentos por princípios semelhantes?”
Sophia, A Mulher Não é Inferior ao Homem (Ideias de Ler, 2024)
Este é um texto que reivindica poder e dignidade. Um texto que reivindica o acesso ao conhecimento, à educação e intelecto como instrumento de combate à insubmissão e bestialidade humana. Uma obra que reclama para as mulheres os mesmos direitos de chefia e autoridade que os homens, descortinando as desigualdades resultantes do velho sistema de crenças machista e patriarcal da tradição teológica.
Uma obra que saúda, também, exemplos de mulheres qualificadas que tiveram em si concentrados toda a autoridade pública – o longevo reinado vitoriano – como também, cargos subordinados de ministras de Estado, vice-rainhas, governadoras, secretárias, conselheiras privadas e tesoureiras que quaisquer mulher deveriam poder aceder.
Passados mais de 200 anos, inserida no mês da história da mulher, e nos 50 anos do 25 de Abril, esta leitura mostra a discussão histórica em torno da equidade de género que falta cumprir. Recordamos que há 50 anos, em Portugal, apenas 25% dos trabalhadores eram mulheres. Há 50 anos as mulheres não tinham acesso a carreiras como a magistratura, a diplomacia, a carreira militar e de polícia. Mães solteiras não tinham qualquer protecção legal; o aborto era punido em qualquer circunstância e a maioria dos distritos no país não tinha maternidades. Há 50 anos atrás a mulher dependia da autorização do marido para exercer trabalho remunerado, podendo este rescindir o seu contrato.
Esta é uma obra que nos obriga a olhar para a história e reflectir sobre os princípios e percursos da luta feminista. Uma luta que mostra ser longa, de séculos e séculos, e que reivindica nada mais nada menos que representação, visibilidade, equidade e justiça social para todas as pessoas.
ISBN: 978-989-740-284-5
Editor: Ideias de Ler
Páginas: 80
Publicado originalmente no site Leituras Queer.
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.