É difícil não olhar com desconfiança em nosso redor
Ironicamente, as eleições legislativas aconteceram dois dias depois da celebração do Dia da Mulher, a 8 de Março.
Na sexta-feira, marchávamos contra o patriarcado, sabendo que estava vivo e de boa saúde. Mulheres, pessoas racializadas e pessoas LGBTQI+ têm sentido na pele o crescimento e normalização de actos de discriminação que, nunca tendo desaparecido, têm vindo a ganhar espaço à medida que a extrema-direita ganha notoriedade. Apesar de sentirmos na pele esse crescimento, foi com choque que recebemos os resultados eleitorais, dando à extrema-direita 48 assentos na Assembleia da República.
Este crescimento da extrema-direita foi uma vitória para os vampiros que há anos se escondem mais ou menos na sombra e que, na segunda-feira, dia pós-eleições, passaram a sentir-se legitimados, sendo notório o sentimento de superior direito ao espaço político, social e de fala. Os vampiros saíram à rua, em bandos com pés veludo, envergando orgulhosamente os seus preconceitos com cheiro a naftalina. Muitos são os que perderam o pudor que lhes restava e que fazia com que guardassem a expressão desses preconceitos para ocasiões especiais e ambientes favoráveis. Sentem agora que o ambiente político lhes é favorável e que, portanto, é a melhor altura para lutarem contra aquilo a que chamam de “ditadura do politicamente correcto”, que mais não é que tratar como iguais quem é diferente deles.
Perante este cenário, é difícil não olhar com desconfiança em nosso redor, não sentir medo.
Começamos a questionar se o tio provocador dos almoços de família e o colega de trabalho com quem partilhamos as nossas horas de almoço são um dos mais de um milhão de votos que ajudou a eleger deputados que querem anular a nossa existência. Que nos querem de volta ao armário e à cozinha.
Cresce a desconfiança e o medo. Pensamos qual o perigo acrescido de fazermos os nossos coming outs neste cenário. Crescem os pensamentos invasivos e o auto-policiamento. Será seguro beijarmos as pessoas que amamos na rua? Será que os nossos cortes de cabelo ou roupas nos podem colocar na mira?
No entanto, esta não é altura de nos calarmos ou escondermos. Esta é o momento para falarmos mais alto e nos beijarmos mais. Este é o momento de ocupar as ruas e o espaço. Os vampiros saíram à rua, mas nós já cá estávamos. E por cá continuaremos.
Vislumbramos a distopia no horizonte e é este o momento para contrapor com a utopia. Este não é o momento de nos contentarmos com a realidade das vitórias alcançadas e de tentarmos não dar mais nas vistas, de forma a não incomodarmos. É o momento de lutarmos por mais e melhor, de trazermos o acto de sonhar de volta para as nossas lutas.
O sonho é uma arma e, se comanda a vida, comanda também a luta.
Bárbara Cruzeiro