Por uma educação médica de qualidade, inclusiva e livre de discriminação LGBTI
Foram aprovadas esta quarta-feira, 6 de Outubro, em Assembleia da República, propostas legislativas que combatem a discriminação para com dadores de sangue, com base na sua orientação sexual ou identidade de género. Ficou claro, que não há sangue de primeira ou de segunda, e que comportamentos de risco não são dependentes da orientação sexual de uma pessoa. No entanto, não é suficiente.
A discriminação de pessoas LGBTI continua a ocorrer todos os dias em hospitais, consultórios e serviços de saúde. As consequências desta discriminação, quer social, quer por parte de profissionais de saúde, são mais do que sabidas e estudadas, tendo repercussões claras nos níveis de saúde da população LGBTI. Está na altura das faculdades médicas e do governo assumirem a responsabilidade de promover um ensino inclusivo e não discriminatório, que aborde direitos e saúde LGBTI e que foque a área da sexologia.
Sabemos que estudantes de medicina das faculdades públicas dispõem de um corpo docente que se empenha em disponibilizar o melhor ensino médico, formando profissionais com a qualidade académica, clínica e humana que deve ser exigida a qualquer profissional de saúde. No entanto, enquanto pessoas LGBTI, a nossa experiência não podia ter sido mais ingrata.
A sexologia, como dimensão integral do ser humano, é também uma disciplina importante da medicina. No entanto, o seu ensino é escasso e pobre. A situação é agravada em específico no contexto de saúde LGBTI, sendo este um tópico genericamente ignorado em termos curriculares, transversalmente, ao longo de todo o curso, abordado de formas cientificamente incorretas e, infelizmente, muitas vezes com juízos de valor por parte de docentes, proporcionando-se momentos de discriminação e LGBTIfóbicos em sala de aula e em consulta.
No final do mês de Setembro, durante uma aula de Bioética e Deontologia Médica, um professor convidado e médico, que assume cargos relevantes no contexto da sexologia em Portugal, justificou a discriminação de pessoas homossexuais no contexto de dádiva de sangue. Para estes casos os falsos argumentos tendem a ser os mesmos: o da promiscuidade, o de que pessoas LGBTI têm mais doenças.
"A alguns destes indivíduos homossexuais, não lhes foi permitido doar sangue porque alguns são portadores de um gene que podem transmitir a sua homossexualidade aos seus netos e têm de ser afastados."
— Antonio Maria Ferreira (@AntonioMariaF17) October 4, 2021
Aula de Bioética e Deontologia Médica, numa faculdade de medicina. Set de 2021 pic.twitter.com/RdjdbwNfdW
No entanto, durante a aula, este professor referiu que a dádiva de sangue por parte de pessoas homossexuais não deveria ser permitia porque "estes indivíduos são portadores de um gene que pode transmitir a homossexualidade". Numa declaração pseudocientífica, em que alegou que os genes se transmitem por sangue - falta a este médico rever um pouco de genética, refere que "os homossexuais não devem dar sangue porque podem transmitir uma alteração social aos seus netos, que é a sua homossexualidade". Confuso, não? Para além de confuso, profundamente discriminador, cientificamente falso e cruzando a linha do criminoso.
Recordar e realçar que estas declarações foram proferidas numa aula a estudantes de medicina.
Os ensinamentos transmitidos a futuros profissionais de saúde moldam o futuro de todo o sistema nacional de saúde e é aqui que se percebe porque é que os níveis de saúde de pessoas LGBTI são mais precários que da restante população, porque, de forma a evitar discriminação, evitam consultas ou idas à urgência. São atitudes que não são aceitáveis, principalmente num país que se diz orgulhoso das suas leis antidiscriminação e protecção de pessoas LGBTI.
Sabemos que bastantes docentes começam a actualizar o conteúdo das suas aulas e a mudar os seus discursos, e que associações de estudantes têm promovido formações e momentos de contacto com associações de saúde inclusivas ou associações LGBTI, no entanto é insuficiente.
É responsabilidade das escolas médicas assumir o compromisso de exigir o rigor, a correção científica e a postura ética de quem ensina. É responsabilidade também dos Ministérios da Educação, do Ensino Superior e da Saúde garantir o cumprimento das leis em vigor, da Constituição da República, da Lei de Bases da Saúde, reforçando o compromisso efectivo com a igualdade e dignidade de todas as pessoas e o fim da exclusão de pessoas LGBTI das suas normas, publicações e projectos.
É responsabilidade das escolas médicas assumir o compromisso de exigir o rigor, a correção científica e a postura ética de quem ensina.
Em todo este processo, há pontos chave básicos:
- Não é aceitável que se continue a difundir a ideia de que pessoas LGBTI são promíscuas, e que apenas estas contraem doenças sexualmente transmissíveis;
- Não é aceitável falar em “genes gay”, “terapias de conversão” e outras teorias, preconceituosas e contrárias ao conhecimento científico, criadas e transmitidas com intuito de remeter pessoas LGBTI para a clandestinidade;
- Não é aceitável continuar a difundir transmedicalismo e a patologizar pessoas trans e não binárias;
- Não é aceitável continuar a utilizar termos e expressões estigmatizantes, não combater microagressões e não promover o ensino empático, laico, humanizado e inclusivo.
Não se pode consentir mais com esta discriminação. Profissionais de saúde que a perpetuem devem sofrer as consequências e, em última instância, ser afastados do ensino e do exercício da sua profissão.
Profissionais de saúde que a perpetuem devem sofrer as consequências e, em última instância, ser afastados do ensino e do exercício da sua profissão.
Os direitos LGBTI são direitos humanos e a discriminação não tem lugar na sociedade nem no ensino. A saúde das pessoas LGBTI já sofreu demasiado e, tal como a saúde de todas as pessoas, é digna de protecção, estudo, humanismo e respeito. O governo tem de assegurar que esta não fica para trás. Precisamos de políticas sérias que combatam a discriminação, descentralizem cuidados de saúde trans, facilitem o acesso à PREP e a educação sexual informativa e inclusiva.
O mundo quer-se unido, diverso, inclusivo e justo para todas as pessoas que habitam nele, e nós, médicas, cientistas e activistas estamos aqui para lutar por esse mundo.
Jo Correia Rodrigues, Luísa Russo e Inês Matos