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A nova velha história da censura de livros LGBTQIA+

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Os livros são uma ferramenta política poderosa. Despertando novas formas de pensar, agir e sentir, o acto de leitura contém em si a possibilidade de emancipação da mente e desenvolvimento do espírito crítico e livre, a possibilidade de transformação social e criação de novas formas de interagir com o mundo. Fruto do poder que o objecto livresco mostra encerrar surgem formas de controlo e limitação ao seu acesso. Recordemos que até Gutenberg e o surgimento da imprensa moderna o acesso aos livros era de uso privilegiado do clero e da nobreza. Na verdade não seria necessário recuar até tanto. Se recuarmos até meados do séc. XX, em Portugal, percebemos como os altos níveis de iliteracia espelhavam a desigualdade social de um país que passara meio século por um governo repressivo.

 

A história da censura dos livros é longa e uma das mais poderosas no mundo. Durante centenas de anos, a Igreja Católica Romana fez uma lista de livros que eram proibidos, o Index Librorum Prohibitorum. Uma lista que durante mais de 400 anos enumerava todos os livros que os católicos eram proibidos de ler, entre os quais o famoso romance de Victor Hugo, Les Misérables. A Bíblia, um dos textos mais antigos do mundo, viu a sua tradução e divulgação ser condicionada durante séculos em diferentes países na Europa de forma a não suscitar interpretações livres.

Mais recentemente, em 1933, na Alemanha Nazi, uma série de fogueiras foram feitas para queimar milhares de livros escritos por autores judeus e comunistas, entre eles: Albert Einstein, Sigmund Freud, Ernest Hemingway, Helen Keller, Lenine, Jack London, Thomas Mann, Karl Marx, Erich Maria Remarque, Upton Sinclair, Estaline e Leon Trotsky. Uma autêntica caça às bruxas dos livros.

Em Portugal, a mão da censura perduraria por quatro décadas provocando um atraso cultural, social e económico no país avassalador. Entre mandados de busca às livrarias, perseguição e ameaça a autores, especialmente a mulheres autoras, o lápis azul da censura mostrou produzir entre 1934 a 1974 mais de dez mil relatórios de leitura a livros de autores portugueses, lusófonos e estrangeiros, em edição original ou tradução, que entravam e circulavam em território nacional. Livros como: o Anticristo, de Friedrich Nietzsche; O Capital, de Karl MarxAntologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália CorreiaOs Sequestrados de Altona de Jean Paul SatreBichos de Miguel TorgaNovas Cartas Portuguesas de  Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, ou as inesquecíveis obras dos poetas de Sodoma, Judith TeixeiraRaul Leal e António Botto, entre tantos tantos outros mais que foram rasurados, carimbados, anotados e destruídos pelo escrutínio do lápis azul.

Passaram quase cinquenta anos desde que Portugal se livrou de um regime ditatorial que reprimia a liberdade de expressão, pensamento e criação artística e/ou literária. Ainda assim, os ecos da perseguição e da censura continuam entre nós. Exemplo breve é a agenda política de partidos conservadores e de extrema direita que tentam retroceder o processo de democratização da república portuguesa. As cruzadas da ideologia de género contra o desenrolar dos princípios de igualdade e não discriminação retumbam entre as bocas de políticos e seus apoiantes que agora se viram contra obras que desafiam a manutenção do sistema hegemónico, como são aquelas de temática LGBTQIA+.

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No passado dia 22 de Setembro, aquando da apresentação do livro infanto-juvenil “No Meu Bairro”, de Lúcia Vicente, obra que aborda a diversidade de género, familiar, racial ou de credo religioso, pensada e escrita em linguagem inclusiva, foi alvo de assalto por um protesto intimidatório de militantes do partido Chega que apontavam a “degeneração” e” depravação”  que o livro representava para as crianças.

Esta manifestação é um exemplo claro do preconceito e desrespeito pela liberdade de expressão e autodeterminação de pessoas LGBTQIA+. Um protesto feito em prol da heterossexualidade e masculinidade frágil de um conjunto de homens que vêem nas temáticas de género e orientação sexual uma afronta aos seus direitos e que por isso, credibilizam os antigos moldes de censura e repressão fascistas.

Um pouco por toda a Europa regressam as restrições que regulam as existências Queer e LGBTQIA+. Na Rússia, Polónia, Hungria, Itália, os direitos desta comunidade são desafiados por agendas políticas que sancionam a “propaganda de relações sexuais não tradicionais”, isto é, da heterossexualidade como norma. Nos EUA, o livro de memórias de de Maia Kobabe, uma obra que reflecte o processo de descoberta da identidade de género e sexualidade da autora, é actualmente uma das obras mais vezes banidas das bibliotecas dos Estados Unidos da América. Um país onde projectos de lei anti-LGBTQIA+ tem sido aprovados afectando milhares de pessoas e famílias LGTBQIA+.

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Mostra ser por tudo isto importante recordar a história, a censura, a perseguição, o controlo por meio do medo infligido a todos aqueles fora das teias do poder dominante. Assistimos hoje ao regresso de novas e velhas formas de censura e repressão social no qual a cada um de nós cabe o papel de cidadania em mostrar o nosso repúdio e contrariar a rasura à tão preciosa liberdade de expressão.

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.