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"Coisas de Loucos: O que eles deixaram no manicómio" de Catarina Gomes

coisas de loucos

«Coisas de Loucos», publicado pela Tinta da China em 2020 e já numa segunda edição, é uma obra em que, habilmente, Catarina Gomes resgata do esquecimento alguns dos doentes do primeiro hospital psiquiátrico a abrir e fechar portas no país, o Hospital Miguel Bombarda ou, como outrora conhecido, o Hospital Rilhafoles, Manicómio e/ou Asilo Miguel Bombarda (1848-2011). 

Encerrando a 5 de Julho de 2011, um espaço hospitalar com cerca de 4 hectares e 163 anos de história, encerra-se também um capítulo da história da ciência psiquiátrica e da prestação de cuidados de saúde mental em Portugal. Episódio que leva a que Catarina Gomes e Paulo Porfírio se juntem num trabalho de investigação jornalística sobre os seus habitantes, aqueles desajustados da sociedade que fizeram o hospital viver durante quase dois séculos e que encontravam nele um capítulo que encerraria a sete chaves as suas vidas. Considerados “loucos”, “alienados”, “dementes”, confinados em celas, os internados do Miguel Bombarda experienciaram os abusos cruéis da terapêutica psiquiátrica pós-moderna como era o habitual recurso aos coletes-de-forças, aos choques eclétricos e às famosas lobotomias como forma de “tratamento moral”.

É através de uma série de objectos não reclamados, perdidos numa caixa esquecida do arquivo do hospital, que Catarina Gomes resgata alguns dos internados de Miguel Bombarda, as suas histórias e  terapêuticas prescritas. Entre os demais a autora traz-nos as histórias de Leopoldina de Almeida – uma mulher que caíra na tentação da emancipação feminina e que a levara à desgraça;  Noé – um meticuloso relojoeiro que padecia de epilepsia; Simão de Carvalho Proença – um dandy lisboeta que encontrara na sua fuga o trágico fim de vida; Manuel Avelar Rodrigues – o capitão de longa viagem que dera a volta ao mundo aos 13 anos; Valentim de Barros – o bailarino aspirante de Vaslav Nijinsky perseguido pela PIDE; Clemente da Costa Santos – o aluno de “Sciências” da Universidade de Lisboa que nunca acabara o curso; Ricardo Vinte e Um – um patriotista que achara ter poderes para colocar fim à segunda grande guerra, e, por último, Jaime Fernandes – o tolo da aldeia que se tornaria num “artista acidental”. 

Todos eles diagnosticados com parafrenias, termo hoje compreendido como esquizofrenia e/ou depressão, doenças que quando controladas por terapêutica médico-farmacológica permitem uma vida independente, “normal”, mas que não chegariam a possuir a liberdade que estes fármacos possibilitariam ao tratamento da doença mental, acabando por passar grande parte das suas vidas numa bolha que a sociedade insistia em ignorar.

Obrigados a ajustarem-se ao internato hospitalar, ao abandono de uma vida de trabalho, de amizades, amores e famílias, a criar novas rotinas e ocupações num ambiente novo e hostil, estes “loucos” mostram-nos ser nada mais nada menos que pessoas banais, de carne e osso, com diferentes horizontes, histórias e percursos de vida que, por determinado infortúnio ou  vicissitude da vida, ficando mais vulneráveis numa sociedade repressiva à diferença, viram ser condenados à invisibilidade perpétua até aos finais dos seus dias.

Todos os utentes que Catarina traz são exemplo dessa punição, no entanto, de forma a perceber o estigma e evolução das atitudes sociais relativamente ao que é considerado “normal”/”anormal”, “saúde”/doença”, “loucura”/”sanidade”, destaco o capítulo destinado a um dos internados mais famosos do Hospital Miguel Bombarda. Valentim de Barros, o primeiro bailarino português a internacionalizar-se e a revelar a sua homossexualidade, envolvendo-se com homens desde muito jovem, incluso um soldado das SS aquando da sua passagem pela Alemanha Nazi, levando a que fosse repatriado para Portugal, preso pela PIDE, institucionalizado durante quatro décadas numa enfermaria destinada a “loucos criminosos” e que visse os seus últimos dias envoltos em doença e abandono total.

Mostrando gozo pelo crossdressing, do seu amor e desejo por homens, dotado de uma personalidade excêntrica que transbordava os limites do aceitável da época, Valentim é diagnosticado com “psicopatia homossexual” e “pederastia passiva”, feito cobaia de uma lobotomia não consentida, uma ano antes de Egas Moniz receber o Nobel da Medicina em 1949.  Uma década após a revolução de Abril se cumprir, e quatro anos após a descriminalização da homossexualidade no país, a ousadia de Valentim não acompanhara os ventos de mudança tendo sido deixado à mercê da doença e da solidão de uma enfermaria de hospital.

Este é um livro que resgata a história e a memória de uma realidade que ainda não nos coubesse viver nos constitui enquanto identidade colectiva. A forma como percepcionamos a diferença, as sexualidades, expressões de género, a diversidade neuro-funcional, a própria saúde-mental, mostra carregar um fardo demasiado pesado de estigma e repressão. Este livro abre-nos portas para esse capítulo que as portas do Hospital Miguel Bombarda quiseram encerrar em  2011.

Booktrailer aqui.

 

 

ISBN:  9789896715533 

Editor: Tinta da China

Páginas: 264

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.