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"Mulheres Livres, Homens Livres: Sexo, Género, Feminismo" de Camille Paglia

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Considerada como uma das intelectuais mais influentes da actualidade e uma das principais teóricas dos “pós-feminismos”, ganhando destaque internacional após a publicação do seu livro Personas Sexuais (1990) - obra adaptada da sua tese de doutoramento na qual critica veementemente o feminismo e defende o poder criador da masculinidade e homossexualidade masculina -, o pensamento de Paglia mostra controvérsia e até certa contradição aos princípios feministas que diz advogar, prova disso é a sua recente obra “Mulheres Livres, Homens Livres: Sexo, Género, Feminismo”, publicada originalmente em 2017 e traduzida para português um ano depois por Hélder Moura Pereira com a chancela da Quetzal.

Antes de entrar em detalhes sobre o livro talvez seja melhor clarificar o significado de “pós-feminismo” para compreender a polémica que a autora lança nos diferentes artigos compilados neste livro. Consultando o Dicionário da Crítica Feminista, o movimento pós-feminista situa-se nos finais dos anos 1960, em França, tendo por base a teoria psicanalítica, defende que a subjectividade masculina e feminina são intrinsecamente distintas – com base no pressuposto essencialista e biologizante da diferença entre sexos. Inserido no feminismo de «Terceira vaga», com uma agenda mais liberal e individualista do que objectivos colectivos e políticos, o “pós-feminismo” considera que as principais reivindicações de igualdade entre os sexos foram já satisfeitas e que o feminismo deixou de representar adequadamente as preocupações das mulheres dos dias de hoje (Macedo & Amaral, 2005). É neste sentido que a visão de um “pós”-feminismo, de ala mais conservadora e até acomodada, é facilmente identificada com o backlash ideológico do feminismo e da pluralidade, da diferença, de reivindicações e conhecimentos feministas.

Se há traço distintivo na escrita de Camille Paglia é este que acabamos de identificar como “pós”-feminista. Deixando-nos facilmente na dúvida se a problemática dos seus argumentos reflectem a pluralidade e multiplicidade de reflexões feministas e dos caminhos em prol da igualdade ou se, porventura, a querela que lança em torno do corpo, da sexualidade, da fertilidade, do assédio e violência sexual - ideias e conclusões que afirma serem “pouco ortodoxas” -, poderão ser reconhecidas enquanto crítica feminista actual ou antes sintoma do backlash à evolução e consagração dos princípios feministas. Pessoalmente, estaria mais inclinado para a última hipótese do que a primeira, vejamos porquê.

Uma das características mais desagradáveis e injustas da segunda e terceira vagas do feminismo é o rancor ressentido e melindrado que manifesta contra os homens. Aproveitou-se das falhas, dos defeitos e das fraquezas dos homens e ampliou-os de forma exagerada, transformando-os em acusações culpabilizadoras.” P.185

As mulheres nunca saberão quem são enquanto não deixarem os homens serem homens. Temos de livrar-nos do Feminismo de Enfermaria, com todo aquele pandemónio de queixosas, anorécticas, bulímicas, depressivas, vítimas de violação e sobreviventes de incesto. O feminismo tornou-se um caixote em que tudo cabe e onde grupos de lamechas carentes podem pôr as suas neuroses bafientas.” P.134

A área dos estudos sobre as mulheres é dominada por uma cambada de gente banal, imbecil e lamurienta, viciada em ideias vindas de França, em que se contam burocratas, seguidistas partidárias, utopistas quixotescas e pregadoras hipócritas. Feministas do campo da razoabilidade e da moderação agem na defensiva e, como aqueles alemães que diziam nada ter a ver com Hitler, permanecem em silêncio face ao fascismo.” P.98

Os excertos supracitados mostram a evidente polémica e adversidade do discurso de Paglia em torno das questões de género desenvolvidas em finais do séc. XX. Defendendo um “feminismo reformista”, de “pensamento independente”, as associações que Paglia tece entre os  feminismos pós-modernos e a suposta relação de misandria com as masculinidades é no mínimo desconcertante e, porventura, revelador de como o seu pensamento permanece de alguma forma trancado às considerações feministas radicais da década de 1960 que a autora saúda ao longo do livro.

Reclamando a identificação histórica e mitológica da mulher com a natureza, da diferença de sexos como princípio natural e norteador dos papeis de género, no qual a reprodução feminina mostra o clímax diferenciador e empoderador do feminino, a académica ataca as actuais considerações feministas sobre o construccionismo social de género e a crítica ao determinismo biológico. Considerações exploradas desde a década de 1970 por teóricos como: Michel Foucault, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Heléne Cixous ou, mais tardiamente, por Judith Butler, a quem Paglia arremete como “ideólogos que fazem uma autêntica lavagem ao cérebro de estudantes facilmente influenciáveis através de teorias perigosamente afastadas da realidade dos factos e com a alegação de que o género é uma ficção arbitrária e opressiva sem qualquer base biológica.” 

O (sinistro) pensamento de Paglia mostra ser na verdade bastante actual. Reacendendo as considerações conservadoras e deterministas face à identidade de género e à sexualidade, desconsiderando as formas machistas e patriarcais no qual as sociedades ocidentais se estruturam historicamente, tais argumentos colocam o ónus da desigualdade e violência de género na vítima por meio de explicações biológicas e animalescas a respeito das diferenças sexuais e da natureza predatória e instintiva das identidades masculinas – Paglia recorre à semiótica da arte para dar exemplos concretos.

Defendendo a mínima intervenção possível do estado face às questões de (des)igualdade género, assim como da revisão dos curricula dos estudos feministas e de género  para que privilegiem o estudo da endocrinologia e da biologia, a “feminista” – e desculpem as aspas – argumenta que a solução para a violência/assédio sexual é se não mais que o controlo individual e perceção que a mulher tem de si, possuindo esta a destreza física e emocional para  se ver livre de tais abusos:  “A única solução para a violação em encontro amoroso é a plena consciência que a mulher deve ter de si própria e o auto-controlo. A principal linha de defesa de uma mulher é ela própria. Quando ocorre uma verdadeira violação, deve comunicá-la à polícia.” P.94

Até aqui percebemos a “liberdade” defendida por Paglia para as mulheres – circunscrita ao carácter determinista da sexualidade feminina - mas e a “liberdade” para os homens? Bem, como não poderiam deixar de ser são todas aquelas que correspondem ao estereótipo de valentia e destreza física, afinal sem essas características “inatas” aos homens as mulheres estariam impedidas do seu sucesso profissional:

Em boa verdade, os homens são absolutamente indispensáveis desde já, por muito que a maior parte das feministas o não reconheça, cegas como estão perante as próprias infra-estruturas que permitem o seu trabalho profissional. São maioritariamente os homens que fazem o trabalho sujo e perigoso de construir estradas, despejar o cimento, colocar tijolos, tapar os telhados com alcatrão, pendurar cabos eléctricos, fazer a canalização de gás e esgotos, cortar e desbastar árvore e escavar a terra para se poderem construir casas. São os homens que içam e soldam as vigas de aço gigantes que sustêm os nossos prédios de escritórios e são os homens que fazem o arrepiante trabalho de erguer as delicadas placas de vidro e de as encaixar nas janelas em arranha-céus com 50 andares de altura.” P.287

Afinal, que liberdade masculina? Procurei a reflexão feminista sobre as desconstrução e libertação das masculinidades de lógicas tradicionais repressoras mas confesso que não as encontrei. Fica o repto para quem se atrever... Concluindo, o título do livro engana. A leitura expectável sobre liberdade para mulheres e homens desilude, pelo menos para quem Paglia tem passado despercebida, foi o meu caso, confesso. A meu ver, este não é um livro sobre liberdade mas sobre alguns dos fundamentos que continuam a aprisionar as identidades a características biológicas deterministas, limitando a possibilidade conhecimento e autodeterminação individual e colectiva. Todavia, embora aflijam as contrariedades ideológicas, ler as reflexões de Paglia mostra ser importante. Importa para perceber as dificuldades e desafios actuais em torno das questões de género assim como da constante reinvenção e reconstrução do pensamento feminista de forma a não deixar ninguém para trás, nem homens nem mulheres, todas as pessoas, géneros, sexualidades por igual medida.

 

ISBN:  9789897224492 

Editor: Quetzal Editores

Páginas: 368

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.

 

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