Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo
Ain’t I a Woman (1981) ou, se quisermos em português, Não serei eu Mulher? (2018), é um clássico obrigatório da teoria feminista e reflexão interseccional. Pelas mãos de bell hooks, feminista e activista norte-americana, é resgatado o famoso discurso de Sojourner Truth (1852) para nos mostrar a sua indignação sobre a histórica diferença das experiências de mulheres negras e brancas no que toca aos papéis e identidades femininas. Para isso, bell hooks, constrói uma reflexão exímia em torno do impacto que a escravatura e o sexismo tiveram no estatuto social das mulheres negras norte americanas na segunda metade do séc. XX.
Entre práticas sexistas das masculinidades, do racismo no meio do movimento feminista e da contestatária participação da mulher negra no feminismo, esta é uma obra que nos elucida quanto à natureza dos princípios racistas e sexistas que mulheres negras enfrentaram, e continuam a enfrentar, nas sociedades contemporâneas.
Consideradas sexualmente depravadas, libertinas, lascivas pela política de hipersexualização do imperialismo racial, a destruição da reputação da mulher negra levou a que estas fossem deslocadas e divididas por dois dos principais movimentos sociais do séc. XX: a luta pela emancipação negra e a luta pela emancipação feminina. Se, por um lado, as mulheres negras eram ensinadas a aceitar a polaridade racial sob a forma de supremacia branca, e a polaridade sexual sob a forma de dominação masculina, de acordo com a ordem patriarcal que reconheceria direitos a homens negros, por outro, eram desconsideradas e romantizadas pelo preconceito racista das feministas brancas que, relutantes a ter menos privilégios daqueles que eram concedidos aos negros, desconsideravam o factor “raça” das experiências de feminilidade.
É a partir da sua dificuldade, em encontrar lugar dentro dos movimentos de emancipação feminina, centrados exclusivamente nas pautas das mulheres brancas, que bell hooks nos dá conta da polarização do movimento feminista e anti-racista:
“Quando se fala de gentes negras, a atenção tende a recair nos homens negros; quando se fala de mulheres, a atenção tende a recair nas mulheres brancas. Isto é particularmente flagrante no vasto corpus da literatura feminista.”
Recusando-se ao silêncio e opressão que as suas conterrâneas estiveram sujeitas, a autora ergue a voz e lança a questão: Como mulheres racistas podem dizer que são feministas? Esta é uma das questões, se não a questão mais determinante neste clássico feminista que, denunciando a falta de representatividade das mulheres negras dentro do movimento feminista, movimento que tendo como objectivo fundamental o da emancipação de todas as pessoas, mostra a necessidade autocrítica sobre as contrariedades trazidas por diferentes correntes ideológicas feministas no reconhecimento da autenticidade dos papeis e identidades de género.
Num mês que tanto serve para assinalar a Revolta de Stonewall, a 28 de Junho de 1969, como uma das figuras mais queridas do movimento activista LGBTQIA+, Marsha P. Johnson, mulher, transexual, negra, cujas causas da sua morte indicam o desprezo violência policial marcada por uma política transfóbica, importa questionar: Como pessoas transfóbicas podem se dizer feministas? Que feminismo é este que ao invés do princípio de sororidade tente a ser excludente e persecutório da diferença de género e/ou sexual?
Um pouco por todo o mundo, as intersecções sexistas, racistas e classistas mostram continuar a ser perpetuadas contra as experiências de feminilidade lésbicas, trans, negras, intersexo e/ou não binárias. Dentro de grupos feministas conservadores e/ou radicais estas experiências de feminilidade continuam a ser negadas do seu reconhecimento e autenticidade, desconsiderando as formas de violência física e psicológica, o assédio sexual, perseguição e homicídio a que são diariamente sujeitas.
Não serei eu Mulher?, é uma obra que embora datada nos recorda como as actuais intersecções sexistas, racistas e classistas continuam a vulnerabilizar diferentes experiências de feminilidade como são as lésbicas, trans, negras, intersexo e/ou não binárias. De como as tensões dentro dos feminismos sempre existiram e como uma vez mais, para a sua superação e transformação social precisamos de reconhecer o seu carácter plural, inclusivo e transformativo.
Uma vez mais, bell hooks instiga:
“A sororidade necessária para levar a cabo uma revolução feminista só pode ser conseguida quando todas as mulheres abrirem mão da hostilidade, do ciúme e da competição que nos tem mantido vulneráveis, fracas e incapazes de conceber novas realidades. Esta sororidade não pode ser forjada com meras palavras. Resulta de um crescimento contínuo e de mudança.”
Editor: Orfeu Negro
Ano: 2022 – 2ª edição
320 páginas, formato 12,5 x 18 cm
ISBN 9789898868343
PVP: 16,20€
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.