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Parlamento português unido contra as "terapias de conversão": cuidados na uniformização

pedro valente

O PS, PAN, Livre e BE defenderam, no passado dia 19 de Abril, que os esforços de mudança da orientação sexual, identidade de género e expressão de género — conhecidos como “terapias de conversão”— fossem proibidas, assinalando que continuam a ser praticadas, a infligir sofrimento físico e psíquico e trauma às suas vítimas, incluindo abordagens no campo da medicina e religioso.

 

Foi com prazer que, dois dias depois, recebemos a notícia que os projetos de lei que penalizam estas práticas foram aprovados no Parlamento.
Parabéns à Assembleia da República por este momento histórico, 32 anos após a despatologização da homossexualidade e quatro anos depois da transgeneridade por parte da Organização Mundial da Saúde. É uma vitória importante, após petições a nível (inter)nacional, recomendações das Nações Unidas e da Ordem dos Psicólogos, e denúncias na comunicação social por parte das associações LGBTI+.
Os quatro partidos propuseram a proibição de quaisquer práticas destinadas à mudança da orientação sexual, identidade ou expressão de género de outra pessoa.
As propostas de criminalização e respetivas penas apresentam diferenças entre os projetos de lei dos partidos.


O PS propõe uma pena de até dois anos de prisão para “Quem praticar, facilitar ou promover atos com vista à alteração ou repressão da orientação sexual, identidade ou expressão de género de outrem, incluindo a realização ou promoção de procedimentos médico-cirúrgicos, práticas com recursos farmacológicos, psicoterapêuticos ou outros de carácter psicológico ou comportamental”.
O PAN, por sua vez, segue a proposta do PS, mas apenas em caso de práticas médicas, sugerindo pena de até um ano de prisão ou multa para outros tipos de práticas.
O BE e o Livre propõem uma pena de prisão até três anos.
Todos os partidos, exceto o PS, defendem a proibição do exercício de funções para aqueles que realizam essas práticas, em qualquer atividade e independentemente de ser no sector público ou privado, por períodos que variam entre dois e vinte anos.


Efetivamente, deve ser reconhecido o agravamento que representam estas práticas em contexto médico. A Medicina é conhecida como a ciência detentora da verdade no que respeita à saúde. Quando este lugar de prestígio é usado para persuadir e patologizar a orientação sexual, identidade de género ou expressão de género de outra pessoa, o impacto vai para além da vítima e do que lhe for infligida. É o uso do poder médico e do que ele socialmente representa, para legitimar práticas discriminatórias sobre as pessoas LGBTI+.
O mesmo acontece quando estas práticas são produzidas em contexto religioso ou familiar. A família é uma estrutura fundamental na definição dos valores e normas socialmente aceite, e quando esses valores são baseados em preconceito e discriminação, corre-se o risco de criar um ambiente hostil para as pessoas LGBTI+.
Ademais, o contexto religioso influencia também a estrutura de uma comunidade. A religião assenta em crenças e dogmas seguidos e aceites pelas pessoas praticantes. Permitir que estas práticas sejam incluídas neste sistema, pode representa um ciclo de perseguição das identidades LGBTI+ para toda uma comunidade.

É preciso sensibilidade para perceber que esta não é uma questão exclusiva de abuso médico e religioso. 44 dos casos de esforços de mudança da orientação sexual reportados no The FREE Project (2022), ocorreram fora do contexto médico e religioso. A maioria dos casos acontece em contexto familiar, em vítimas com uma idade média de 13 anos.
Assim, além destas práticas não poderem constituir “terapia”, porquanto não partem de evidência científica — e não exista, em bom rigor, algo a curar — o próprio uso da terminologia “terapia” induz em erro, por ocorrerem muito além do contexto médico.


Os partidos propõem que as penas sejam agravadas caso esses crimes sejam cometidos por mais de uma pessoa, se a vítima for menor de 16 ou 14 anos, ou se for uma pessoa particularmente vulnerável, além de agravadas pelo resultado, se dos atos resultarem ofensas à integridade física grave, perigo para a vida, suicídio ou outras.
O partido Livre propõe que as pessoas condenadas por estes crimes possam ser proibidas de assumir a tutela de menores, nomeadamente através da adoção, acolhimento familiar, apadrinhamento civil ou outro tipo de guarda, por um período de dois a vinte anos.
A juventude e as crianças LGBTI+ são uma camada especialmente vulnerável da nossa população, tanto pela sua dependência económica e emocional, por estarem ainda em desenvolvimento da personalidade, e social, tendo a sua autonomia restringida. Estarão por isso, à partida, menos capazes de resistir a sua submissão a estes esforços. Estas especificidades devem também ser acauteladas pela lei, na medida em que representam uma forma de abuso infantil.


O PAN propõe também que estas práticas sejam estudadas, recomendando que, nos três meses posteriores à entrada em vigor da nova lei, o Governo, em articulação com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), faça um estudo sobre os impactos físicos e psicológicos nas vítimas e um levantamento sobre o número de pessoas sujeitas a estas práticas em todo o território nacional.
Este ponto é especialmente importante. Na luta pela proibição e penalização dos esforços de mudança da orientação sexual, identidade e expressão de género, foi-me muitas vezes questionado: mas isso há cá [em Portugal]? Temos alguns dados sobre isso (ILGA Portugal, 2014; dezanove.pt, 2015; Ana Leal, 2019; Ricardo Fernandes, 2021; Telmo Fernandes & Jorge Gato, 2022;), mas poderíamos ter muita mais informação.
Muitas vezes me encontrei a praticamente ter de pedir às pessoas para confiarem que esta questão não está ultrapassada, exatamente pela falta de informação extensa. Mesmo assim, importa saber que a falta de dados não é suficiente para desvalidar a necessidade de legislar sobre este assunto. “Como tudo em termos jurídicos, se não está proibido, nunca se sabe o dia de amanhã” (Marta Ramos, 2018).


Agora, com a uniformização dos vários projetos de lei nesta matéria e dos trabalhos especializados do Parlamento, o texto final será submetido novamente ao Plenário para uma votação final global. Se aprovado, resultará na publicação de legislação a ser assinada pelo Presidente da República. É um passo significativo na proteção dos direitos das pessoas LGBTI+.
Estes projetos de lei aprovados possuem um potencial imenso na melhoria dos direitos das pessoas LGBTI+, se bem uniformizados. Porém, será sempre necessário acautelar a melhor defesa contra estas práticas.
Na passagem para um texto único, é essencial que se mantenha as proteções da orientação sexual, identidade de género e expressão de género, na medida em que todas estas são de perseguição por estas práticas.


No texto final, importa ressalvar o facto destas medidas não poderem atentar contra o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género. Reconheça-se que nem estes traços possuem a mesma natureza. A expressão de género pode ser alterada, a lei precisa de impedir todos os esforços de terceiros que contundam, restrinjam ou proíbam a autodeterminação. Todas as pessoas devem ter apoio na autodeterminação de expressão de género, mas nunca serem forçadas ou censuradas a preencherem a normatividade de género.
A orientação sexual e a identidade de género pode mudar, mas não pode ser mudada. Não existem bases científicas para afirmar que estas características podem ser alteradas recorrendo a quaisquer “terapias de conversão”, por vontade própria ou de terceiros. São características de vida própria, construídas, mas não escolhidas.


Este é um momento histórico, em que o Parlamento português se uniu, em maioria, para afirmar que “não há nada a curar”! Fazemos votos no sentido de que esta legislação entre em vigor o mais rapidamente possível.

 

Pedro Valente, Ativista LGBTI+, Estudante de Sociologia e Técnico de Apoio Psicossocial