Kiko is Hot: “Estamos a pedir que não façam humor com as minorias”
No passado dia 20 de Julho, foi para o ar mais um programa “O Rei manda”, da Rádio AVfm de Ovar, no qual três locutores, falam sobre Francisco Soares, mais conhecido por Kiko is Hot, (o actor da série “Casa do Cais”), de forma sexualizada, preconceituosa e estereotipada.
O dezanove.pt entrevistou Kiko, o qual partilhou que teve conhecimento do referido programa não só pela partilha de um amigo, mas, “ironicamente”, também porque um dos locutores partilhou o programa nas redes sociais, identificando-o. Para o actor e youtuber, esta atitude começa por mostrar uma clara falta de noção dos envolvidos. Kiko reagiu ao programa nas suas redes sociais.
EU NÃO SOU UM OBJECTO SEXUAL PORQUE TENHO CARACTERÍSTICAS QUE VOCÊS CONSIDERAM FEMININAS. EU NÃO SOU UMA COISA PARECIDA COM UM HOMEM. EU NÃO SOU UM TRABALHO MAL ACABADO. EU NÃO TENHO DE ARRANCAR NADA PARA ME MOLDAR E ENCAIXAR NO QUE VOCÊS ACHAM QUE É CORRECTO EU SER. pic.twitter.com/TiodOqd5VV
— KIKO (@KikoisHot) July 20, 2021
Porém, Kiko partilhou também com o dezanove.pt o que sentiu ao ouvir o que foi dito sobre si:
“Eu primeiro não queria acreditar. Eu estou habituado, na minha carreira toda, a ler coisas, mas ouvir aquilo assim, a estar a acontecer sobre mim… Eu estar a ouvir o meu nome e aqueles três homens estarem a discutir a minha intimidade e o que eu devia ou não fazer com o meu corpo e a sexualizarem-me daquela forma, isso realmente fez-me muita confusão. Porque uma coisa é quando vês escrito e outra coisa é quando tu ouves a conversa. Eu tenho perfeita noção que aquelas conversas existem a toda a hora, mas não são gravadas. O que ainda me fez mais confusão, porque aqueles três homens estiverem à vontade para ter aquela conversa num programa de rádio, com ouvintes. Já seria mau se fosse uma conversa de café, só entre eles, mas terem o à-vontade e o desplante de terem aquela conversa num programa público e ainda terem o desplante de me identificarem para eu ver e ouvir o que estão a dizer sobre mim, fiquei completamente chocado.”
É ainda uma realidade que pessoas da comunidade LGBTQI+ sejam alvo de preconceito e discriminação, pois tal como Kiko também referiu, nada disto foi uma novidade, pois passar por este tipo de situações tem sido algo recorrente na sua vida. Porém, desta vez achou que deveria fazer algo e partilhar o que estava a acontecer:
“Por todas as vezes em que fui silenciado ou me silenciei a mim próprio e porque queria que as pessoas vissem e ouvissem o que ainda está a ser dito em 2021”.
Fê-lo inspirado nos movimentos de partilha que cada vez estão a surgir mais, mas não deixou de ficar surpreendido por toda a força e apoio que teve, considerando também que refletem que hoje em dia muitas pessoas vão tendo mais noção do que é certo e do que é errado. Para o próprio, há momentos em que não é mais possível tolerar o intolerável – é sim crucial dizer e mostrar que é errado, que o mundo mudou e ainda está a mudar e que as pessoas LGBTQI+ não vão continuar a permitir este tipo de coisas.
O próprio Kiko sente que tem feito essa mudança, afirmando que há um tempo atrás teria “ignorado” e rido do que foi dito, não por efectivamente ter piada, mas como defesa e para se adaptar ao mundo dos outros. Porém, não existe o mundo dos outros: o mundo é de todas as pessoas e para haver espaço para todas é necessário que se desconstruam preconceitos e estereótipos, que se desenvolva mais a empatia e a compreensão. E a luta LGBTQI+ só faz sentido se for uma luta interseccional, cujo propósito seja ir mais longe do que atingir a igualdade - seja sim alcançar a equidade.
Os pedidos de desculpa chegaram, tanto por parte da Rádio como parte dos humoristas, como é possível verificar abaixo:
Porém, se o pedido de desculpas da Rádio deixou Kiko satisfeito, por efetivamente terem tomado medidas e por ser sensível aos argumentos que apresentaram, o pedido de desculpas dos "humoristas" ficou muito aquém do expectável, pois usaram como “escudo” e argumento o humor. E sem dúvida que um dos debates que este caso trouxe ao de cima foi precisamente sobre os limites do humor. Para Kiko:
“Eu acho que nós estamos muito agarrados a lógicas arcaicas, antigas e o mundo está sempre a mudar e as pessoas têm muita resistência à mudança, mas o mundo está a mudar, é irrefutável essa afirmação. O que eu gostava que os humoristas percebessem é que, o mundo estando a mudar, as pessoas vão mudar com o mundo também. E se calhar está na altura da profissão de humorista se adaptar. Se tudo é humor, porque é que o humor é feito ainda à custa das minorias? À custa de pessoas que já passaram por muitas situações difíceis, pessoas que têm muita mágoa, muito sofrimento, muito bullying… Porque é que as piadas são feitas à custa dessas pessoas? Não podemos ser mais inteligentes agora? Como ser empático, eu não tenho problema nenhum em ouvir o outro e se o tiver magoado, pedir desculpas e reconhecer que errei. Então porque é que por vezes há esta resistência dos humoristas em pedirem desculpa e em afirmarem que se as pessoas não entendem as suas piadas, a culpa é delas? Se uma pessoa faz piadas à custa dos outros, tem que compreender que as pessoas vão sentir-se pessoalmente ofendidas. Porque é sobre mim. Esta piada não foi sobre, hipoteticamente, alguém. Foi sobre o Kiko, estão a dizer o meu nome, é sobre mim, como é que não vou ficar ofendido? O que não invalida que existam muitos humoristas que façam humor sem ser à custa dos outros e eu conheço alguns. Apenas acho que está na altura de mudar e de sermos mais inteligentes com o humor. Se um conjunto de pessoas diz que algo não tem piada e que traz ao de cima traumas existentes, se calhar está na altura de avançar. Até porque só estamos a pedir para não fazerem piadas com minorias. As pessoas já não toleram certas coisas e ainda bem, ainda bem que já avançamos, e acho que esse caminho se vai fazendo. Mas há um grupo de humoristas que não entende que há coisas que já não funcionam, porque o mundo está a avançar. E há uma coisa muito importante que às vezes os humoristas não percebem, que é o estares a fazer piadas sobre certos assuntos, estás a retirar-lhes importância e a legitimar algo que não era suposto”.
Outro debate fundamental e necessário que este caso trouxe à tona, foi também o da importância da empatia, da escuta e da desconstrução de estereótipos e preconceitos. Kiko afirma que:
“Não existe eles e nós, fazemos todos parte de um todo. Durante muito tempo não nos foi dada uma plataforma, fomos retratados muitas vezes estereotipadamente, durante muito tempo não tivemos controlo da narrativa que passava cá para fora, éramos retratados de uma maneira super cliché, e acho que hoje em dia está a haver muito mais uma conversa aberta sobre isso, nós somos muito mais do que isso. Nós precisamos que as mentalidades mudem e para as mentalidades mudarem as pessoas precisam de ouvir e acho que falta muito isso ainda. Acho que a coisa mais importante em qualquer evolução é ouvir”.
É crucial colocarmo-nos no lugar do outro, fazer esse exercício repetidamente. Kiko não tem dúvidas que “Se aquelas pessoas se conseguissem meter no meu lugar, aquelas piadas simplesmente não eram feitas”.
Pode até parecer mais difícil colocarmo-nos no lugar do outro quando não somos o outro, quando não pertencemos lá – mas não é impossível. Se é inegável que o mundo está a mudar, que possamos então também mudar com ele e, principalmente, evoluir!
Paula Monteiro