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Uma breve explicação sobre os machões e a “ideologia de género” 

antónio joão

1ª parte: era uma vez o homem, a mulher, o masculino, o feminino e a heterossexualidade 

 

No início, sabe-se lá quando, ao certo, o homem monopolizou o espaço público, monopolizando o discurso e, com isso, escolhendo e definindo conceitos e a sua adequada utilização. Criando-se, como homem, criou o Outro, neste caso, a Outra, a mulher. Sequentemente, adjectivou-se, moldando, com isso, linguagens corporais e comportamentos práticos supostamente seu apanágio, isto é: ao homem cabia, por divina atribuição, o papel activo, a virilidade, o poder de gritar e de se fazer notar por uma voz alteada e, claro está, o poder de gerar e de gerir moeda; a mulher, sempre a Outra, ficava com a contraparte: o papel passivo, a sensibilidade, a fragilidade, o silêncio do privado e sempre sob estreita dependência do homem, que a protegia (dos outros e de si mesma). O homem fez-se a si, fez a mulher e, nesse processo de se fazer a si e à outra, fê-la subalternizada a ele. Estamos a falar, entenda-se, num processo de “fazeção” no discurso; mas, como tão bem se sabe, “no princípio era o verbo” e, precisamente por isso, toda a matéria que nos envolve só existe humanamente porque foi, um dia, (humanamente) nomeada e conceptualizada. 

Em suma, o homem trouxe, para si, aquilo que, mais tarde, se veio a denominar como masculino, deixando, para a mulher, o “ino” sobrante, o feminino. Assim, percebe-se, que o masculino não se dá “naturalmente” no homem, nem o feminino se dá “naturalmente” na mulher; mulheres e homens têm, em si, masculino e feminino, mas, e uma vez que vivemos numa rede social profundamente binária, os homens são lançados, ainda antes do seu nascimento, num processo performativo (socialmente desejável de acordo com os ditames patriarcais) que tende a masculinizá-los (e, tão só, masculinizá-los... não há cá espaço para homens com feminino) e, as mulheres, lançadas num processo performativo que visa feminizá-las (e, tão só, feminilizá-las... não há cá espaço para mulheres com masculino).  Tacitamente, subentende-se que todo este organigrama por trás da formação do homem, da mulher, e das suas supostas “características naturais", respectivamente, tem em si implícito a ideia de heterossexualidade; homens, masculinos-viris e activos que se relacionam com mulheres, femininas-sensíveis e passivas. Resultado: os homens, possuidores da mágica semente e as mulheres, simples receptáculo que concretizam o milagre fértil expelido pelo santo falo, perpetuam a espécie e as prerrogativas acima referidas. A mulher, transformada em máquina parideira ao serviço do senhor, será mãe de mulheres como ela subalternas e de homens fortes e decisores como o pai. 

 

2ª parte: era uma vez a desprivatização do ânus, os dildos e a não heterossexualidade

Eventualmente, houve homens que descobriram que também tinham orifícios dignos de fazerem deles seres passivos; tal como, mulheres houve que descobriram que podiam, também elas, ser activas, de muitas e variadíssimas formas: ou porque tinham mãos, ou porque tinham língua, ou porque davam asas à imaginação e criavam uma série de objectos tão ou mais adequados para a penetração (actividade) do que o falo de homem. Então, mas vamos lá ver, se o homem pode ser passivo e se a mulher pode ser activa, não é o homem estritamente activo, nem é a mulher estritamente passiva, é assim? Então, se ser passivo é ser-se feminino, e se ser activo é ser-se masculino, quer isso dizer que pode o homem ser feminino e a mulher masculina? Resposta: Sim, o homem também é feminino e a mulher também é masculina. 

Os homens não podiam saber que tinham um “cu” prontinho para ser utilizado, porque não podiam publicitar que, afinal, também eles podiam ser passivos e, com isso, constatar que feminino e masculino não são monopólio de nenhuma identidade específica. Por esse motivo, em Portugal até 1982, a criminalização de toda e qualquer prática sexual entre dois homens, criminalizou, de forma indirecta, o ânus como órgão sexual. Havia uma claríssima intencionalidade de descredibilizar o ânus como órgão passível de dar prazer, associando-o ao crime, à indignidade e à imundice e, com isso, a todo o homossexual. Havia que criminalizar o “cu”, órgão-não-reprodutor e susceptível de retirar o monopólio da agência activa pelo homem. 

As mulheres, por sua vez, não podiam saber da existência de falos sintéticos, porque não podiam saber que podiam ter autonomia sexual face ao homem; importava que elas pensassem que só existiam sexualmente através do homem e da sua excrescência. 

A constatação de que o género é uma construção e não algo que ocorre de forma natural no corpo trouxe novas perspectivas às identidades que têm explorado uma série de possibilidades de se ser; os corpos não-binários e os corpos trans vieram confirmar, ainda mais, a não correspondência do sexo atribuído à nascença com género (pénis-masculino – clitóris-feminino) e deixar a sociedade heteropatriarcal com os cabelos em pé. Estes corpos são, e nas palavras de Paul Preciado, autênticos “terroristas de género”.  

 

3ª parte: era uma vez os machões que não gostam da “ideologia de género”

Antes de mais, o que é a ideologia de género? Diz a internet: “é uma expressão usada pelos críticos da ideia de que os géneros são, na realidade, construções sociais”. Bem, que o género é uma construção, parece-me óbvio, e só não vê quem não quer; e aí é que está. Quem é que não quer ver o evidente? O machão. O machão é homofóbico porque não quer que se saiba que o homem pode ser passivo e que a mulher pode ser activa; caso isso se saiba, todo o binarismo bem engavetado que organiza a sociedade como um todo é posto em causa. Homens-Passivos e Mulheres-Activas? Se a mulher também é activa pode ocupar o espaço público que não é, afinal, regalia única do homem. O machão é transfóbico porque não quer que se saiba que alguém a quem à nascença foi atribuído o género masculino e que era suposto performativizar-se como homem, pode ser mulher, e que alguém dado como mulher-feminino à nascença, pode ser homem. O machão não quer perder direitos que julgava inalienáveis, por isso é que não gosta que se saiba que o género é criação humana; por isso é que não quer que se fale disso em lado nenhum; por isso é que sempre que alguém critica a “ideologia de género” o machão rejubila e bate palmas, ridiculamente entusiástico. Não há outro motivo plausível, a não ser esse, que justifique a abominação sentida pelo machão quando se fala do género como algo que não existe a priori. 

 

Dizer que o género é construção mais não é do que abrir possibilidades aos corpos, dando-lhes uma mais conveniente roupagem identitária consoante a vontade pessoal, que ninguém conhece melhor do que o próprio sujeito; ideologia de género é, então, emancipação corporal e emancipação corporal é direitos humanos. 


António João